AGRARIO, Pastor. ALICUTO, Pescador.
A rustica contenda desusada Entr'as Musas dos bosques, das areias, De seus rudos cultores modulada; A cujo som attonitas e alheias Do monte as brancas vaccas estiverão, E do rio as saxatiles lampreias;
Desejo de cantar. Que se movêrão Os troncos ás avenas dos pastores, E ja sylvestres brutos suspendêrão. Não menos o cantar dos pescadores As ondas amansou do fundo pégo, E fez ouvir os mudos nadadores.
E se por sustentar-se o moço cego Nos trabalhos agrestes a alma inflama, O que he mais proprio no ocio e no socêgo; Mais maravilhas dando á voz da fama,
No mesmo mar undoso e vento frio
Brazas roxas accende a roxa flama.
Vós, ó ramo d'hum Tronco alto e sombrio,
Cuja frondente coma ja cobrio
De Luso todo o gado e senhorio;
E cujo são madeiro ja sahio
A lançar a forçosa e larga rede
No mais remoto mar que o mundo vio;
E vós, cujo valor tão alto excede, Que, a cantá-lo com voz alta e divina, A fonte do Parnaso move a sêde;
Ouvi da minha humilde çanfonina A harmonia, que vós ja levantais Tanto, que de vós mesmo a fazeis dina. Mas se agora que affabil m'escutais, Não ouvirdes cantar com alta tuba O que vos deve o mundo, que dourais; E se os Reis avós vossos, que de Juba Os Reinos debellárão, não ouvis
Que nas azas do excelso verso suba; Se não sabem as frautas pastoris Pintar de Toro os campos semeados D'armas e corpos fortes e gentis;
Por hum Moço animoso sustentados, Contra o indomito Rei de toda Hespanha, Contra a fortuna vaa e injustos fados: Hum Moço, cujo esforço, brio e manha, Do Olympo fez descer o duro Marte, E dar-lhe a quinta esphera, que acompanha; Se não sabem cantar a menor parte Do sapiente peito e grão conselho, Que pôde, ó Reino illustre, descansar-te; Peito, que ao douto Apollo faz, vermelho, Deixar o sacro Monte e as nove Irmãas, Porque a elle se affeitem como a espelho; Saberão bem cantar, em nada vãas, D'Alicuto as contendas e d'Agrario; Hum d'escamas coberto, outro de lãas.
Vereis, Duque sereno, o estylo vário,
A nós novo, mas n'outro mar cantado De hum, que só foi das Musas secretario: O pescador Sincero, que amansado Tee o pégo de Prochyta co'o canto Por as sonoras ondas compassado. Deste seguindo o som, que póde tanto, E misturando o antigo Mantuano, Façamos novo estylo, novo espanto. Partira-se do monte Agrario insano Para onde a força só do pensamento Lh'encaminhava o lasso pêzo humano. Embebido em hum longo esquecimento De si, e do seu gado e pobre fato, Apos hum doce sonho e fingimento, Rompendo as sylvas horridas do mato, Vai por cima d'outeiros e penedos, Fugindo, emfim, de todo humano trato. Ante os seus olhos leva os olhos ledos Da branca Dinamene, qu'enverdece Só co'o meneo valles e rochedos.
Ora se ri comsigo, quando tece Na phantasia algum prazer fingido; Ora falla; ora mudo s'entristece.
Qual a tenra novilha, que corrido Tée montanhas fragosas e espessuras, Por buscar o cornigero marido;
E cansada nas humidas verduras Cahir se deixa ao longo d'hum ribeiro, Ja quando as sombras vem cahindo escuras; E nem co'a noite ao valle seu primeiro Se lembra de tornar, como sohia,
Perdida por o bruto companheiro: Tal Agrario chegado, emfim, se via Onde o grão pego horrisono suspira N'huma praia arenosa, humida e fria.
Tanto que ao mar estranho os olhos vira, Tornando em si, de longe ouvio tocar-se De douta mão não vista e nova lira. Fez-lhe o som desusado desviar-se Para onde mais soava, desejando D'ouvir e conversar, e de provar-se. Muito não tinha proseguido, quando Em a concavidade d'hum penedo, Que pouco a pouco fora o mar cavando,
Topou hum pescador, que prompto e quedo, N'huma pedra assentado, brandamente Tangendo, faz o mar sereno e ledo.
Mancebo era d'idade florecente, Pescador grande do alto, conhecido Por o nome de toda humida gente: Alicuto se chama: que perdido Era por a formosa Lemnoria; Nympha que tee o mar ennobrecido.
Por ella as redes lança noite e dia; Por ella as ondas tumidas despreza; Por ella soffre o sol e a chuva fria.
Co'o seu nome mil vezes a braveza D'irados ventos amansou co'o verso, Que remove das rochas a dureza.
E agora em som de voz, suave e terso, Está seu nome aos ecos ensinando
Por estylo do agreste som diverso.
Ouvindo Agrario, attonito, affroxando Da phantasia hum pouco seu cuidado, Suspenso esteve os numeros notando. Mas Alicuto, vendo-se estorvado Por hum pastor da musica divina, O rosto levantou bem socegado,
E disse assi: Vaqueiro da campina, Que vens buscar ás arenosas praias, Onde a bella Amphitrite só domina?
Que razão ha, pastor, para que saias A este nosso escamoso e vil terreno Dos teus floridos myrtos e altas faias? Pois s'agora o mar vês brando e sereno, E estender-se estas ondas por a areia, Amansadas das mágoas, com que peno, Logo verás o como desenfreia Eolo o vento por o mar undoso, De sorte que Neptuno se receia.
Responde Agrario: Oh musico e amoroso Pescador! eu não venho a ver o lago Bravo e quieto, ou vento brando e iroso; Mas o meu pensamento, com que apago
As flammas ao desejo, me trazia
Sem ouvir e sem ver, suspenso e vago: Até que a tua angelica harmonia M'acordou, vendo o som, com que aqui cantas A tua perigosa Lemnoria.
Mas se de ver-me cá no mar t'espantas, Eu m'espanto tambem do estylo novo Com que as ondas horrisonas quebrantas. Porém se com verdade o louvo e approvo,
« VorigeDoorgaan » |