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II.

Eu cantarei de amor tão docemente,

Por huns termos em si tão concertados,
Que dous mil accidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena, ausente.
Tambem, Senhora, do desprêzo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-hei dizendo a menor parte.
Porém para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho, e arte.

III.

Com grandes esperanças ja cantei,
Com que os deoses no Olympo conquistára;
Depois vim a chorar porque cantára,
E agora chóro ja porque chorei.

Se cuido nas passadas que ja dei,
Custa-me esta lembrança só tão cara,
Que a dor de ver as mágoas que passára,
Tenho por a mór mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que hum tormento Dá causa que outro na alma se accrescente, Ja nunca posso ter contentamento.

Mas esta phantasia se me me mente?

Oh ocioso e cego pensamento!

Ainda eu imagino em ser contente?

IV.

Despois que qniz Amor que eu só passasse
Quanto mal ja por muitos repartio,

Entregou-me à Fortuna, porque vio

Que não tinha mais mal que em mi mostrasse.
Ella, porque do Amor se avantajasse

Na pena a que elle só me reduzio,
O que para ninguem se consentio,

Para mim consentio que se inventasse.
Eis-me aqui vou com vário som gritando,
Copioso exemplario para a gente

Que destes dous tyrannos he sujeita;
Desvarios em versos concertando.

Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!

V.

Em prisões baixas fui hum tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:

Inda agora arrojando levo os ferros,

Que a morte, a meu pezar, tee ja quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado,

Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi miserias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo, A Morte cega, e o Caso duvidoso Me fizerão de gostos haver medo.

V1.

Illustre e digno ramo dos Menezes,
Aos quaes o providente e largo Ceo
(Que errar não sabe) em dote concedeo,
Rompessem os Maometicos arnezes;
Desprezando a Fortuna e seus revezes,
Ide para onde o Fado vos moveo;
Erguei flammas no mar alto Erythreo,
E sereis nova luz aos Portuguezes.
Opprimi com tão firme e forte peito
O Pirata insolente, que se espante
E trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa á côr do Arabo Estreito;
Assi que o Roxo mar, daqui em diante
O seja só com sangue de Turquia.

VII.

No tempo que de amor viver sohia,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,

Em várias flammas variamente ardia.

Que ardesse n'hum só fogo não queria

O Ceo porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co'o pêzo descansou
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,

Pois para passatempo seu tomou

Este meu tão cansado soffrimento!

VIII.

Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faiscas me mostrou hum dia,
Donde hum puro crystal se derretia

Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que alli via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao soffrimento doce e leve.

Jura Amor, que brandura de vontade
Causa o primeiro effeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que he verdade.

Olhai como Amor gera, em hum momento, De lagrimas de honesta piedade Lagrimas de immortal contentamento.

IX.

Tanto de meu estado me acho incerto,-
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa juntamente chóro e rio;

O mundo todo abarco, e nada apérto.

He tudo quanto sinto hum desconcerto:

Da alma hum fogo me sahe, da vista hum rio; Agora espero, agora desconfio;

Agora desvarío, agora acérto.

Estando em terra, chego ao ceo voando; N'hum'hora acho mil annos, e he de geito Que em mil annos não posso achar hum' hora. Se me pergunta alguem, porque assi ando, Respondo, que não sei: porém suspeito Que só porque vos vi, minha Senhora.

X.

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar:

Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nella está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente póde descansar,
Pois com elle tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidea,
Que como o accidente em seu sojeito,
Assi com a alma minha se confórma;

Está no pensamento como idea;

E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a materia simples busca a fórma.

XI.

Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.
Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga co'o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o soffrimento.
Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.

Mas se me vê co' os males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.

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