O desejo privado d'esperança, Que tão mal se podia ja mudar? Agora a saudade do passado, Tormento puro, doce e magoado, Que converter fazia estes furores Em magoadas lagrimas d'amores?
Que desculpas comigo só buscava, Quando o suave Amor me não soffria Culpa na cousa amada, e tão amada! Erão, emfim, remedios que fingia O medo do tormento, qu' ensinava A vida a sustentar-se d'enganada. Nisto huma parte della foi passada; Na qual se tive algum contentamento Breve, imperfeito, timido, indecente, Não foi senão semente
D'hum cumprido, amarissimo tormento. Este curso contino de tristeza, Estes passos vãamente derramados, Me forão apagando o ardente gôsto, Que tão de siso n'alma tinha pôsto, Daquelles pensamentos namorados Com que criei a tenra natureza, Que do longo costume da aspereza, Contra quem força humana não resiste, Se converteo no gôsto de ser triste.
Dest' arte a vida em outra fui trocando; Eu não, mas o destino fero, irado; Qu'eu, inda assi, por outra a não trocára. Fez-me deixar o patrio ninho amado, Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes m'esteve a vida chara. Agora exprimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo Visse, e tocasse o acerbo fructo seu. E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo. Agora peregrino, vago, errante, Vendo nações, linguagens e costumes, Ceos varios, qualidades differentes, Só por seguir com passos diligentes A ti, Fortuna injusta, que consumes As idades, levando-lhes diante Huma esperança em vista de diamante: Mas quando das mãos cahe se conhece Que he fragil vidro aquillo que apparece. A piedade humana me faltava, A gente amiga ja contrária via, No perigo primeiro; e no segundo, Terra em que pôr os pés me fallecia, Ar para respirar se me negava,
E faltava-me, emfim, o tempo e o mundo. Que segredo tão arduo e tão profundo, Nascer para viver e para a vida, Faltar-me quanto o mundo tee para ella! E não poder perdella,
Estando tantas vezes ja perdida! Emfim, não houve trance de fortuna, Nem perigos, nem casos duvidosos, Injustiças daquelles que o confuso Regimento do mundo, antigo abuso, Faz sobre os outros homens poderosos,
Qu'eu não passasse, atado á fiel coluna Do soffrimento meu, que a importuna Perseguição de males em pedaços Mil vezes fez á fòrça de seus braços. Não conto tantos males, como aquelle Que despois da tormenta procellosa, Os casos della conta em porto ledo; Qu'inda agora a fortuna fluctuosa A tamanhas miserias me compelle, Que de dar hum só passo tenho medo. Ja de mal que me venha não m'arredo, Nem bem que me falleça ja pretendo; Que para mi não val astucia humana. De força soberana,
Da Providencia, emfim, Divina pendo. Isto que cuido e vejo, ás vezes tomo Para consolação de tantos danos. Mas a fraqueza humana quando lança Os olhos no que corre, e não alcança Senão memoria dos passados anos; As ágoas qu'então bebo, e o pão que como, Lagrimas tristes são, qu'eu nunca domo, Senão com fabricar na phantasia Phantasticas pinturas d'alegria.
Que se possivel fosse que tornasse O tempo para traz, como a memoria, Por os vestigios da primeira idade; E de novo tecendo a antigua historia De meus doces errores, me levasse Por as flores que vi da mocidade; E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento, Vendo a conversação leda e suave, Onde huma e outra chave
Esteve de meu novo pensamento, Os campos, as passadas, os sinais, A vista, a neve, a rosa, a formosura, A graça, a mansidão, a cortezia, A singela amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura, Como a qual outra alguma não vi mais... Ah vãas memorias! onde me levais O debil coração, qu'inda não posso Domar bem este vão desejo vosso?
Não mais, Canção, não mais; qu'irei fallando, Sem o sentir, mil annos; e se acaso Te culparem de larga e de pezada; Não pode ser (lhe dize) limitada A ágoa do mar em tão pequeno vaso. Nem eu delicadezas vou cantando Co'o gosto do louvor, mas explicando Puras verdades ja por mi passadas. Oxalá forão fábulas sonhadas!
Nem roxa flor de Abril,
Pintor do campo ameno e da verdura,
Colhida entre outras mil,
Foi nunca assi agradavel á donzella Cortez, alegre e bella,
De sua mãe cuidado e glória pura, Como a mi foi a inculta formosura Natural, que pudera
A Saturno render na sua Esphera. Natural fonte agreste,
Não lavrada d'Artifice excellente, Mas por arte celeste
Derivada de rustico penedo,
Não fez ja mais tão ledo
Cansado caçador por sesta ardente, Quanto o cuidado a mi me fez contente
Do ver tão descuidado,
Que faz sereno a Jupiter irado. Fructa, que sem concerto
Naturalmente em ramos se pendura,
Achada por acêrto;
A quem pintada a vê de sangue e leite,
Não lhe dara o deleite,
Qu'essa graça me dá sem compostura, Ornamento da mesma formosura,
E o toucado sem arte,
Que tornára pastor ao bravo Marte.
A manhãa graciosa,
Que derramando sahe d'entre os cabellos
A flor, o lirio, a rosa,
Sem ajuda d'ornato, ou d'artificio,
Não faz o beneficio,
Que faz a luz dos vossos olhos bellos
A quem os vê tão puros e singelos;
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