Pedia elle então á sua musa que o ajudasse a completar esse poema da gloria nacional, e, rejuvenescendo, o seu estro tinha toda a abundancia, toda a frescura de seus melhores dias. Eis a estancia: « Vão os annos descendo, e já do estio O primeiro de todos os heróes da India é Pacheco, o Achilles Lusitano. O poeta pinta as suas façanhas em numerosos versos e torna suas batalhas lendarias; mas, lembrando-se de seu triste fado, faz a deusa dirigir uma apostrophe á Belisario, em que mostra a triste sorte do governador da India, condemnado á morrer indigente, depois de ter soffrido as maiores humilhações. Esses versos o poeta escreveu-os com sentimento. Seu destino parecia-lhe dever ser o mesmo do heróe portuguez, e, com a altivez do genio, não acreditava ter feito menos do que elle pela patria. A perspectiva, no fim de uma vida inteira de sacrificios, de morrer em um leito de hospital dictou á Camões essas oitavas de uma tão grande energia. E' uma accusação feita á D. Manoel, no reinado de seu neto, e feita com vigor; ainda que o poeta quizesse temperal-a com uma phrase que é uma inverdade historica ó rei só n'isto iniquo, a ingratidão do rei é patente e a censura é acre. Dizendo á Belisario, cujos infortunios foram talvez exagerados pela piedade popular, que elle teria em Pacheco um companheiro, assim nos feitos, « Como no galardão injusto e vario, >> a deusa continúa : << Em ti, e n'elle veremos altos peitos, Manda mais que a justiça, e que a verdade. << Isto fazem os reis, quando embebidos A' lingua vã de Ulysses fraudulenta. >> Quem póde ler esses versos sem reconhecer a boa tempera da alma de Camões? Quem póde negar-lhe coragem quando elle assim ataca o throno, os cortezãos o os validos, e quando em cada verso d'esses os contemporaneos veriam a satyra de seu tempo? Como, porém, se isso não bastasse, o poeta interpella o proprio D. Manoel. Que fina ironia a d'estes dois versos: «Se não és pera dar-lhe honroso estado dirigida aos reis que não sabiam recompensar os que lhes davam novos reinos, como Pacheco e Cortez, nem os que lhes descobriam novos mundos, como o Gama e Colombo! Vemos depois D. Francisco de Almeida e seu filho Lourenço de Almeida. A morte deste é pintada em um quadro de uma grande verdade; a poesia pouco tinha que accrescentar á historia. << Com toda uma coxa fóra, que em pedaços, Onde subito se acha vencedora. >> Esse heróe que se serve do coração que lhe ficou, é uma das mais bellas pinturas do valor que sobrevive ao soffrimento e que é sempre o mesmo em quanto ha no corpo um resto de vida. D'este podia elle dizer promettendo a eternidade á sua memoria: «Vai-te, alma, em paz da guerra turbulenta., A dôr e a ira do vice-rei pela morte de seu filho é descripta em uma oitava, que respira colera e que em se advinha o exterminio do inimigo; é um pai que arde em desejos de vingança, e que diante dos olhos só tem o quadro da morte heroiça do filho : «Eis vem o pai, com arimo estupendo, pensa elle então em destruir o poder contrario, afo- · gal-o em seu sangue, sepultal-o com suas náos no fundo do mar; antes, porém, de encontrar MirHocem, afia elle a espada na cidade de Dabul, << Qual o touro cioso, que se ensaia, No tronco de um carvalho, ou alta faia, D. Francisca de Almeida é dos mais notaveis nomes feitos pelas armas na conquista da India; a morte mesmo accrescenta-lhe novo prestigio ; já Adamastor havia rendido homenagem á seu tumulo. Vem depois o grande Albuquerque, cuja apparição é representada por um clarão, que deslumbra a deusa: << Mas oh, que luz tamanha, que abrir sinto, Lá no mar de Melinde em sangue tinto ! O poeta, porém, fal-a interromper os louvores, por lembrar-se de um acto de rigor praticado por ordem de Albuquerque. Sabendo que um de sua armada tinha relações com uma escrava moura, destinada á rainha, mandou-o enforcar em uma das náos. Camões sentio no coração ao reler as chronicas uma oppressão de dôr; o cadaver d'esse soldado pendurado nas vergas da não, pelas sombras da noite, desenhou-se á seus olhos e elle perguntou qual o crime do executado. Era um desvio do amor, e o poeta tinha sempre o mesmo perdão para elles. A deusa relata desde então a conquista da India; Soares, Menezes, Siqueira, o forte Mascarenhas, Sampaio feroz, Noronha, Castro libertador, apparecem entre tantos outros na galeria dos heroes do Oriente. Assim desde o titulo do poema até o seu epilogo o poeta mostra que só quiz cantar a patria. Esse livro que elle escreveu com tanto amor era uma offerta do coração. Nunca um poeta teve um mais difficil assumpto para escrever uma epopéa. Quem ler o roteiro de Vasco da Gama perguntará admirado como poderia aquillo ser o argumento de um poema. E' certo que a navegação foi altamente heroica. No tempo dos argonautas o valor estava em confiar-se ao mar; no tempo do Gama as viagens não offereciam senão perigos excepcionaes, e hoje com o vapor é quasi mathematico o periodo e o resultado d'ellas. Mas o descobrimento de um mundo é um feito epico e legendario. Os perigos atravessados, os obstaculos vencidos, a luta quotidiana dos chefes que confiam e da tripulação que duvida, os novos horisontes, os novos astros e até os novos phenomenos maritimos; a anciedade de cada manhã, em que se quer descobrir uma terra, que não surge mais; a gloria de sulcar mares virgens, o prestigio do desconhecido, tudo faz da travessia de um Gama ou de um Colombo um periodo realmente epico. A terra, depois, que se mostra, a alegria de todos, a natureza virgem, uma vegetação desconhecida, outras raças de homens, um mundo novo emfim! eis uma verdadeira epopéa. Fazer, porém, com esses elementos um poema, que não seja a copia da natureza morta, que não seja a repetição do diario de bordo, que no mais alto gráo prenda o interesse, dramatico, cheio de vida, de movimento e de paixão, eis o que nenhum poeta pôde fazer antes de Camões, nem ousou fazer depois. Para alcançar tudo o que obteve, o poeta tomou a historia da patria, e fez d'essa expedição que descobriu a India um momento da vida nacional. O heróe ficou sendo o paiz e o poema pôde com verdade ser chamado os Lusiadas. Ao lado, pois, da acção epica que se desenvolve em todo o poema, porque vemos as náos sahirem |