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Camões pertenceu á religião catholica; ainda que por vezes o fanatismo e o clero merecessem sua censura, não se póde dizer que confundisse elle a doutrina com a superstição, o sacerdocio com os ministros; Camões foi, pois, e viveu sempre catholico, e por isso, ainda que sua imaginação ás vezes acompanhasse as deliciosas ficções do paganismo hellenico, não se póde crer que sua fé vacillasse.

Não; era elle um fervente sectario que julgava prestar um serviço á fé e á patria escrevendo seu poema.

Quiz elle cantar a gloria dos reis,

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Havia n'elle tambem um germen de fanatismo arabe, porque queria eternisar as devastações feitas nos paizes gentios, esquecendo que ao mesmo tempo absolvia para sempre os Gengis-Khans e os Atilas...

e as terras viciosas

De Africa, e de Asia, andáram devastando.

iam na

Cantava assim Camões a gloria dos que vegando para estender a lei de Christo. Vasco da Gama parece-nos, em um de seus versos, um missionario como S. Francisco Xavier. Se, pois, o poema de Camões era no seu entender um poema christão, como depois deviam ser com alguma phantasia a Jerusalém libertada e com todo o puritanismo inglez o Paraiso perdido, essa mythologia é contradictoria com o seu pensamento cardeal.

Como ao Gama que invoca o Deus do seculo XV só responde Venus? como só ella protege e salva

essa frota que vai estender a fé christa? como depois que a conduz á seu destino e fal-a produzir todos os fructos, ou pelo menos espalhar todas as sementes, que tinha por missão deixar em terras da India, é ainda a mesma Venus quem recompensa os portuguezes? Que ha de commum entre a religião de Christo e o culto de Venus? Que obra foi essa de propaganda christã que só recebeo recompensa da divindade menos popular da idade média e de seu ascetismo?

Parece antes á todos os que lêem os Lusiadas que o christianismo e o brahmanismo não eram os rivaes; toda a contenda é entre Venus e Baccho. Se Venus triumpha, o Oriente está descoberto; se Baccho triumpha, o cabo Tormentorio terá sido chamado por D. João II cabo da Boa Esperança por uma infeliz illusão, que devorará todas as armadas lusitanas. Rasgai o livro dos commentadores, esquecei a historia tão popular do poeta, os Lusiadas vos parecerão escriptos por um grande genio que pertencesse á religião de Virgilio!

Não foi, porém, arbitrariamente que o epico portuguez figurou essa lucta entre duas divindades do antigo Olympo, Venus e Baccho, lucta que se desenvolve através de todo o poema. Na Iliada os deuses levam tão longe seu amor que tomam parte por aquelles que protegem nos combates dos gregos e dos troianos; na E.eida' o amor de Venus continúa por seu filho, que o braço de Neptuno havia arrebatado aos dardos do divino Achilles ; seria, porém, nos Lusiadas a protecção de Venus e o odio de Baccho reflexo dos dois outros poemas, ou teria Camões um pensamento mais profundo que occultar sob esse symbolismo?

Camões não é um poeta que se precise de interpetrar e sobre o qual variem os commentarios. Não escreveu nem um Apocalypse,nem um Inferno; exprimio sempre da maneira a mais transparente sua idéa, e se algumas vezes seu estylo não é bastante claro, o que succede sobre tudo em suas Rimas, ha apenas um defeito de expressão. De posse da idéa, julgou ás vezes que por um signal todos poderiam adevinhal-a e nós ficamos sem descobrir sua intenção; mas isso é um defeito de estylo, não ha desfarce para o pensamento, não ha esoterismo nem symbolica. E' o poeta mais claro de todos e por isso não devemos attribuir á sua obra senão a significação patente, nem dar-lhe outra interpetração que não seja a vulgar. Vejamos, pois, porque Camões buscou para os portuguezes o amor de Venus e o odio de Baccho. O que move Baccho á odiar os portuguezes é a inveja; teme que a fama de suas victorias na India seja vencida e que seja sepultado

«Seu tam celebre nome em negro vaso

Da agua do esquecimento..,. se lá chegam
Os fortes Portuguezes, que navegam.>>

O proprio Marte fallando uma linguagem soberba no concilio dos deuses lança á Baccho essa ameaça, que é uma sentença,

«. .... nunca terá alheia inveja

O bem, que outrem merece, e o céo deseja. »

O que move Venus é o

mesmo amor á sua

gente romana: d'ella os portuguezes tinham herdado as qualidades e a lingua,

« .... na qual quando imagina

Com pouca corrupção crê que é latina. »

A outra razão que movia Cytheréa era esperar culto e preito da gente belligera por toda a parte em que ella se estendesse.

Não se entenda por isso que as armas andem seguidas dos prazeres. A Venus de Camões é a deusa do amor. Desde Platão que ha duas Venus, a celeste e a terrestre; podia o epico portuguez pintar ás vezes a sua de modo, como no canto II, á parecer a deusa da sensualidade; estude-se, porém, a figura e ver-se-ha que ha nella a castidade e o idealismo da Venus de Milo.

Tambem esse Baccho que Camões designou em um de seus mais censuraveis versos por deus do vinho (1) é o conquistador da India, o heróe cuja fama Alexandre encontrára no lugar de suas conquistas, sem apagal-a porque não tivera a dita de Achilles. Essas são as razões do amor de Venus e do odio de Baccho; não apparece ahi o dualismo? Não queremos emprestar á Camões um pensamento que elle não tivesse, mas parece-nos que elle quiz fallar da rivalidade das tradições, das civilisações, dos mundos, do passado e do futuro, da raça latina e da raça mongolica, do Occidente que queria tudo descobrir e do Oriente que se queria encerrar em sua immobilidade.

E' isso que se vê por todo o poema. Venus para quem estuda a pequena theogonia do poeta é a mai de Enéas, fundador do estado romano; á

(1) Das nymphas que se estão maravilhando
De ver que commettendo tal Caminho

Entre no reino d'agua o rei do vinho. » Canto VI.

ella pertence a protecção da raça portugueza; é ella o espirito do Occidente encarnado sob a mais seductora e divina das fórmas-a do amor,- obrigado a salvar a frota que levava, por assim dizermos, em si as altas muralhas do dominio latino no Oriente, como outr'ora salvára os restos da armada troiana que tinha em seu seio o poder e a gloria da futura Roma. Baccho é o immovel Oriente, que quer prolongar infinitamente sua separação do mundo, que vive com suas tradições, que se fecha em seu isolamento.

Dissemos no principio que talvez esse Baccho fosse o sol. Camões, porém, se tivesse tido a idéa de oppôr o sol ao senhorio portuguez não procuraria uma fórma symbolica; dil-o-hia claramente, não faria do astro-rei tão bellas descripções, nem buscaria sempre um de seus raios para alumiar as glorias lusitanas. Uma investigação mythologica systematica póde descobrir sob o culto de Baccho e nas festas dyonisiacas a religião do sol; o poema de Nonnus pode prestar-se á essa ousada hypothese; não o póde, porém, o poema de Camões. O que é licito, sim, ver nesse dualismo de Venus e Baccho, é a rivalidade dos dois mundos; ainda que o christianismo, em um poema que se propunha á immortalisar os audazes missionarios da fé pela espada, devesse figurar nessa luta de que elle alimentava a intensidade, a encarnação myhica do Occidente em Venus e do Oriente em Baccho faz que só haja no poema o dualismo da civilisação romana, renascente no seculo XVI, e da civilisação oriental.

Qualquer, porém, que fosse a intenção de Camões, o que se vê no seu poema é o perfeito re

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