nascimento dos velhos meios poeticos de Homero e de Virgilio. A confusão do catholicismo com o paganismo é flagrante em muitos pontos do poema. Que confissão mais perfeita de que o paganismo tinha sua parte de verdade do que essa associação do Olympo grego com o céo christão? Em Mombaça Baccho adora Christo «<e assi por derradeiro O falso deus adora o verdadeiro; >> mas essa conversão, que seria em todo o caso uma pobre invenção poetica, é apenas uma simulação, porque muito tempo depois vemos Baccho preparando no palacio de Neptuno a medonha tempestade que ameaçou engolir a frota portugueza. Os mensageiros divinos não são anjos, como Gabriel, linda creação do genio de Tasso e do pincel de Raphael Sanzio: são os mesmos da fabula. Depois d'esse lindissimo quadro da supplica de Venus e da prophecia de Jupiter, quadro inspirado pelo do primeiro canto da Eneida, mas original na execução, não nos maravilha que Jupiter chame o filho de Maia; tinhamos visto isso em Virgilio, « Hæc ait: et Mai genitum demittit ab alto; » sorprehende-nos, porém, que Vasco da Gama tivesse reconhecido em Mercurio o enviado de seu Deus e houvesse dito: « Dai as velas... dai ao largo vento, A impressão produzida no espirito vulgar pe uso do maravilhoso mythologico é má; destróe por assim dizermos, a verdade da narração, cria uma atmosphera sobrenatural em que vivem os heroes d'esse tempo, parte a unidade das tradições, faz, em uma palavra, parecer de outro seculo, não só o poeta, como tambem a epopéa. Nos espiritos cultivados tambem a impressão é dolorosa; lamenta-se que preso ás cadêas de uma arte convencional o genio do poeta não se elevasse ás alturas, que são o seu dominio incontestavel; sente-se que não confiando bastante na immortalidade de sua obra procurasse elle dirigir-se pela vereda que tinham seguido seus predecessores; que se esquecesse de que uma obra prima para apossar-se do futuro só precisa de produzir-se; lamenta-se, para dizermos tudo, que esse genio superior tenha contado mais com seu seculo do que comsigo. Quer isso, porém, dizer que o maravilhoso mythologico não fosse usado pelo grande epico com uma felicidade admiravel? Já mostramos quantos quadros magnificos o paganismo inspirou-lhe; para alguem que acreditasse que tinhamos assignalado tudo que ha pos Lusiadas, de verdadeira inspiração, da theogonia paga, bastaria dizer que não analysámos a apparição do Adamastor, a obra prima da lingua portugueza. Por ora criticamos tão sómente o emprego do maravilhoso pagão, acreditando que o genio de Camões teria subido ás alturas á que se elevou Dante e Shakaspeare e que os Lusiadas seriam um poema incensuravel, se o poeta não houvesse desconfiado de si e não se houvesse sujeitado ao molde das antigas epopéas. Fallando em these, a mythologia de um povo não serve á litteratura de um povo differente; se os Niebelungen tivessem por divindades Minerva e Juno, se Cupido impellisse Gunthar para Brunhild, se Marte sustentasse o valor de Siegfried, quem veria no poema a epopéa nacional dos povos germanicos? Quem tambem perdoaria Ossian, elle se roubasse á seus cantos aquelle perfume de originalidade, de que elles resćendem, pondo Malvina sob a protecção de Venus, ou fazendo uma divindade da Iliada sustentar o escudo de Trenmor e Apollo cobrir com a nuvem o vulto de Fingal? E esses são os poemas nacionaes. De certo os Lusiadas são um poema nacional, o mais nacional dos poemas, como mostramos, em um sentido: que a acção é verdadeiramente portugueza e que o mais subido amor da patria o inspirou; mas epopeas nacionaes assim chamadas são aquellas em que se vê mais a inspiração do povo que a do poeta, de tal fórma que se chega á pensar que essas obras divinas são como gerações expontaneas da intelligencia de um povo em certas epochas do ardente enthusiasmo. Se se perdesse a memoria de Camões e se attingindo os Lusiadas á antiguidade da Iliada, dissesse alguem que eram elles uma epopéa nacional do XVI seculo, quem o acreditaria? A duvida que ha sobre a Iliada não poderia existir sobre elles. Porque? Será que a obra de Camões seja mais perfeita de que a de Homero, que haja n'ella mais unidade, que pareça mais a creação de um só espirito? A razão é outra: é que os Lusiadas são do seculo XVI e tem a mythologia de seculos prehistoricos, e nenhum povo crea suas legendas fóra de sua religião; a expontaneidade falta ao poema, e por isso só podia elle ser creação de um espirito refractario ou superior á seu tempo. Depois de tudo isso que temos dito contra o emprego do maravilhoso pagão, resta-nos uma attenuante á apresentar em nome do poeta. Se ha uma verdade sanccionada pela historia, é a de que os deuses que vão não voltam. No tempo de Camões a mythologia de Virgilio estava enterrada sob doze seculos, sob as ruinas do mundo romano e da idade média. O polytheismo era apenas uma recordação historica, um objecto de erudição e de investigação litteraria. Seria tão difficil resuscital-o como restituir á Pompeia a vida e o movimento que tinha quando o Vesuvio cobrio-a de cinzas e de lavas. A idade média toda tinha passado sobre elle; não restavam mais ruinas de seus templos, quando os mosteiros levantavam por toda a parte suas muralhas; sua architectura mesma estava esquecida, porque o espirito do povo durante longo tempo tinha-se habituado a elevar-se até Deus seguindo a flecha das cathedraes que se apagavam nas meias sombras do ar. Sentimentos differentes tinham então nascido na alma, e a piedade, creação do doce ascetismo' das Therezas de Jesus, impedia a volta triumphante dos deuses licenciosos da Grecia e de Roma. Estava morto o polytheismo. Demais com os Arabes tinha apparecido na Europa o ultimo inimigo armado da fé christã, e já oito seculos tinham passado depois da hegyra; se no Oriente tinha-se visto a Europa reduzida a abandonar aos Ottomanos o imperio de Constantino com o tumulo de Christo, no Occidente, quando Camões escreveu o seu poema, já o islamismo era um vencido, e mais ainda, segura pelo ferro contra os barbaros a Igreja tinha começado sua purificação pelo fogo. Muitos acontecimentos portanto tinham passado sobre o tumulo das faceis divindades do Olympo, quando alguns poetas, deixando o estylo das lendas de cavalleria da idade média, desenterraram-nas para ornar com ellas os seus versos. Nenhum d'elles converteu-se ao polytheismo; todos, porém, cedendo á influencia da arte antiga, abraçaram as ficções poeticas da velha mythologia. Se em um poema, em que cantava os paladinos da fé, Camões povoou o seu céo com os deuses do Olympo, é porque sabia que em seu tempo elles não eram senão um velho recurso poetico, que podiam servir para bellos quadros. Venus pode estar ao lado de Christo, porque todos sabem que essa Venus nunca existio, e é apenas uma ficção para alimentar a longa narração do poema. Camões não suppoz ter offendido a religião, nem destruido por suas proprias mãos o monumente que pretendia erguer aos dilatadores da fé. Qualquer que seja a força d'essa razão, a verdade é que o maravilhoso pagão foi imposto á Camões por seu seculo. Mas ainda sob a influencia das idéas de seu tempo, e obedecendo á ellas, fechado no circulo da renascença, subio elle tão alto quanto o engenho humano tem subido. Se se emancipasse da atmosphera pagã, não teriamos nós o Adamastor, nem a ilha dos Amores; teriamos, porém, sempre a Ignez de Castro, e, livre, o genio de Camões poderia ter-se elevado á poetica universal, para que caminha o seculo XIX. Era infelizmente preciso que elle introduzisse o sobrenatural no seu poema, e para isso fez um poema perfeitamente pagão. Tasso formou com os despojos de todas as religiões a sua demonologia, não povoou, porém, senão as baixas regiões |