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lugar, pela historia, e por sua propria viagem no rumo do Gama, teria concebido essa inimitavel creação.

Vão as náos lusitanas penetrar nos mares do Oriente quando por uma noite de uma treva transparente desenvolve-se ao longe uma nuvem espessa e de seu seio começa a desprender-se a fórma de um novo colosso de Rhodes. Seu rosto é carregado como uma costa. arida e queimada pelo sol, sua barba csqualida como a vegetação dos pantanos africanos, os olhos são encovados, a postura é medonha como a dos penedos que surgem á prôa do navio, a côr é terrena, a bocca negra como a dos precipicios e das cavernas, os dentes amarellos como a espuma phosphorescente em noite de tormenta. Não é esse colosso, assim desenhado nos versos do poeta:

«Não acabava, quando uma figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandissima estatura,
O rosto carregado, a barba esqualida :
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a côr terrena e pallida,
Cheios de terra, e crespos os cabellos,
A bocca negra, os dentes amarellos. >>

a propria sombra de uma costa distante? Não parece a representação animada do promontorio, tão real que o espirito depois segue a metamorphose do gigante no cabo, como se aquelle não fosse senão a perspectiva longinqua deste? E' o cabo das Tormentas quem assim detem as náos portuguezas e faz parar o Gama. Deitado na extremidade sul da Africa, era elle o eunucho que guardava a virgindade dos mares do Oriente e os thalamos do sol.

Já Bartholomeu Dias o havia descoberto, sem ter podido desvendar os seus segredos; a frota lusitana, porém, d'esta vez tinha por si o destino, trazia o rumo verdadeiro dos berços do dia, e ia na direcção das Indias. Para desviar os portuguezes d'esse caminho, para impedir que as suas náos rasgassem o seio virgem das ondas do Indostão e da Arabia, o gigante toma emprestada a voz do oceano e começa a desvendar-lhes os casos futuros. Como exprobra elle aos Lusos a ousadia de navegarem esses mares, por tantos seculos virgens do roçar de qualquer lenho! como lhes annuncia a completa destruição da primeira armada que os seguisse n'essa passagem, a infeliz armada de Pedro Alvares Cabral! como os previne da morte de Bartholomeu Dias, seu descobridor, com uma ira tão concentrada que faz crer no poder de sua vingança! que linda homenagem a D. Francisco d'Almeida não é essa tambem cruel prophecia, em que se mede o valor do homem pela ira de Adamastor e pelo involuntario tributo que elle lhe paga:

«E do primeiro illustre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os céos,
Serei eterna e nova sepultura

Per juizos incognitos de Deus. »

Não fallou, porém, nunca o poeta a um só sentimento; uma das provas de seu genio é que sempre os moveu todos. Assim Adamastor não podia só querer amedrontar esses novos argonautas, devia tambem tocar-lhes o coração. O medo não era conhecido por esses navegantes, cujo chefe, outro Jason, podia perguntar ao colosso:

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,,E tu acreditas que jamais tivessemos medo ?"(1) Mesmo a impressão de terror produzida pelo gigante, seria sempre inferior á coragem d'elles. A piedade, porém, é outro sentimento, e as naturezas mais elevadas, aquellas que até não conhecem o medo, podem dobrar-se e curvar-se sob sua acção. Appellava pois Adamastor para a sensibilidade do Gama e de seus irmãos de gloria, e como todos os appellos de Camões esse é eloquentissimo. E' o quadro prophetico que desenha Adamastor do naufragio de Sepulveda; são apenas tres estancias, mas de uma paixão tão profunda que lendo-as vemos n'ellas a grande dôr do poeta, em vez da fria serenidade de um promontorio animado.

E' preciso confessar que a creação de Adamastor parece á primeira vista não ter unidade moral e que toda a sua vehemente apostrophe ao Gama e á raça lusitana parece mal combinada para sustar a derrota dos descobridores da India. Já o vimos ardendo em vingança prophetisar-lhes fados crueis, agora o vemos impressionando-os com a narração de uma tragedia para sempre memoravel.

O que, porém, parece desharmonia é que esse ente cheio de tanta colera chore sobre os fados, de que elle proprio quiz ser propheta, e que interrogado por Vasco da Gama conte-lhe, como se fôra um velho amigo, a historia de seus amores. Sobretudo parece não coadunar-se com o seu proposito de deter os navegantes o trahir elle o se

(1) Val-Pater.-Argon. Mene aliquid metuisse putas?

gredo de sua metamorphose e de sua impotencia, dizendo-se inimigo de Neptuno e fulminado por Jupiter.

Lembrem-se, porém, os leitores que Adamastor é um gigante vencido, que elle é a representação de uma fatalidade de longos seculos, que tinha isolado as Indias da Europa, e que Vasco da Gama era, por assim dizermos, um enviado celeste e a apparição nos mares do Oriente de um principio novo de civilisação e de fé. Esse gigante adormecido durante tanto tempo era pois um obstaculo vencido, e cumprindo o seu dever de defensor dos mares elle tinha consciencia de sua fraqueza: isso explica ao mesmo tempo as suas ameaças e sua indiscripção. Se mesmo assim explicado, o pensamento do poeta não parecer bem expresso, porque não se ha de admittir que esse gigante fulminado ostenta sua quéda, e sente-se ainda bastante forte, depois de esmagado por Deus, para luctar contra os homens? Porque tambem não se ha de pensar que sua missão de guarda dos mares estava concluida depois de tão terriveis prophecias, e que vendo avançarem apezar dellas as náos portuguezas em busca de uma gloria, que lhes havia de custar tanto sangue, sentiu elle toda a sua colera trocar-se em admiração por esses ousados exploradores, inaccessiveis ao medo, e, o que é tudo, á piedade, quando se tratava de dilatar a fé e a patria?

E' preciso buscar em todas essas conjecturas a unidade moral de uma creação, como a de Adamastor, que por si só salva do esquecimento uma litteratura.

A narração do naufragio de Sepulveda é feita, como dissemos, em tres estancias, que não podem ser elogiadas demais. Eil-as:

<< Outro tambem virá de honrada fama,
Liberal, cavalleiro, enamorado,

E comsigo trará a fermosa dama,

Que Amor, per gran' mercè, lhe terá dado,
Triste ventura, e negro fado os chama
N'este terreno meu, que duro e irado
Os deixará d'um cru naufragio vivos
Pera verem trabalhos excessivos.

<< Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados, e nascidos:
Verão os Cafres ásperos e avaros

Tirar á linda dama os seus vestidos :
Os chrystallinos membros e preclaros,
A' calma, ao trio, ao ar, verão despidos:
Despois de ter pizada longamente
Co'os delicados pés a areia ardente.

<< E verão mais os olhos, que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes miseros ficarem
Na férvida e implacabil espessura.
Alli, despois que as pedras abrandarem
Com lagrymas de dor, de magoa pura,
Abraçados as almas soltarão

Da fermosa e miserrima prisão. »

Seria impossivel tornar mais sensivel, do que o poeta as deixou todas, qualquer das bellezas d'essas tres estancias: a morte dos meninos nascidos e gerados em tanto amor, a casta descripção da nudez d'essa infeliz D. Leonor de Sá, com os pés queimados pelas areias ardentes, pisadas longamente: outros tantos passos de uma dolorosa paixão! a solidão dos dois amantes no meio de um horisonte sem voz e sem écho, no infinito esteril! Ha, porém, uma belleza n'essas oitavas sobre a qual é preciso insistir: é a affirmação solemne

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