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ção d'este por uma luz tão viva que não se pode supportar nos lembra o sol, a d'aquelle por uma transparencia luminosa, por essas cavernas profundas, por uma areia mais alva que a prata, por uns toques insensiveis da luz que penetra o christal da agua, pelo aljofar, por umas refracções delicadas, nos lembra o mar. E' n'essas justas conveniencias da idéa com a forma que se avalia o verdadeiro genio: Phebo, o sol, não podia residir senão no palacio de Ovidio; Poseidon, o mar, não podia ter outra morada senão a que lhe deu Camões.

Um poeta, porem, como elle, povôa seus mundos, e, ainda na harmonia dos seres com o meio em que vivem, reconhece-se que elle é um genio creador. Só quem pode crear concebe organismos tão perfeitos, sêres tão possiveis e tão reaes, um todo tão bem combinado e relaccionado com cada uma de suas partes, que vendo-se uma dessas creações diz-se logo: isto tem vida.

O primeiro habitante mythico d'esse reino é Tritão, que

«Era mancebo grande, ncgro e feio

<< Trombeta de seu pai e seu corrreio. »

Como o pinta Camões! ao ler essa descripção todos acreditam ver, um filho das aguas, um habitante secular das caveruas do oceano, em cujas costas se haviam incrustado todos esses pequenos animaes que vivem na agua, e prendido os musgos das pedras :

«Os cabellos da barba, e os que decem

Da cabeça nos hombros, todos eram

Uns limos prenhes d'agua; e bem parecem
Que nunca brando pentem conheceram ;

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Vê-se que o poeta quiz rir ao escrever essa estancia, mas o seu Tritão, que elle ainda nos pinta na seguinte oitava, coberto de

« Ostras, e breguigões de musgo sujos
A's costas, com a casca, os caramujos, >>

é perfeitamente desenhado; o verso aspero, duro, cheio de saliencias, é o mas adequado para nos descrever as conchas d'esse monstro marinho. Se este tem essa forma irregular e feia, a pura Tethys caminha como uma outra Venus:

« Grave e leda no gesto, e tam fermosa,
Que se amansava o mar de maravilha. >>

A deusa do mar devia ter a transparencia das aguas, e o poeta sonha-a assim, quando falla de seu corpo crystallino. "

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A falla de Bacho aos deuses do mar é como todas as fallas do poema, composta com muita arte, e como todas tende a realçar a gloria portugueza.-Depois de ter-se dirigido aos deuses na ordem hierarchica do modo mais lisongeiro, depois de ter lembrado certas verdades, começa o filho de Semele á mostrar-lhes os perigos, que a expedição de Vasco da Gama faz correr Olympo.

A oitava em que elle lembra aos deuses a primeira tentativa mythica do homem contra o céo, o crime de ter navegado os mares, e o progresso incessante que transformará o homem em deus, é de um maravilhoso effeito. A hyperbole final é

eloquentissima, e admira-nos que criticos atilados do poema achassem alguma coisa que reparar em uma tão perfeita estancia. Camões é inimitavel no talento que tem de apoderar-se do pensamento de seus heróes e de fazel-os fallarem a linguagem a mais apaixonada, a mais convincente, a mais natural.

Lêa de novo o leitor essa homenagem indirecta, prestada ao progresso, á perfectibilidade, ás grandes conquistas do homem :

«Vistes que com grandissima ousadia,
Foram já commetter o ceo supremo;
Vistes aquella insana phantesia

De tentarem o mar com véla, e remo :
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Suberbas e insolencias taes, que temo
Que do mar e do céo, em poucos anos,
Venham deuses a ser, e nós humanos.

وو

A navegação, chamada "insana phantasia de tentar o mar com véla e remo é a mais aspera satyra que o poeta podia fazer á esses representuntes de um passado para sempre morto, que maldizem o progresso, como o cego maldiz a luz, como o egoista ao morrer o sol que deve nascer para os outros. O elogio dos portuguezes é tambem posto na bocca de Lyeu; é nma mescla de de desprezo e de homenagem que trahe realmente o estado d'essa alma obrigada á reconhecer e á odiar a verdade.

Recordando-se dos castigos que em outro tempo puniram os temerarios, e mostrando toda a ousadia dos novos argonautas, Baccho falla tambem de si: enternece as divindades marinhas com a lembrança de seus triumphos na India, inflamma-as quando lhes diz que o Olympo vai ser destruido, que os

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deuses protegem os homens contra um deus, e que vem buscar nos mares o valor, o poder, que perdeu nos ceos. Não esperavamos que uma tal falla acabasse por um pranto incessante; para fazer chorar, não basta que se chore, é preciso que haja uma grande dor, e que se a veja nas lagrimas. Horacio têm, como sempre, razão quando nos diz que para fazer alguem chorar é mister chorar primeiro,

si vis me flere, dolendum est, Primum ipsi tibi

mas é tambem mister chorar por uma grande dor, como a de Telepho e a de Peleo, de que elle nos falla. As lagrimas de Baccho no fim do mais artistico, medido, e pensado discurso do poema fazem o effeito de um ultimo argumento de antemão preparado; ora o rosto imberbe e risonho, coroado de pampano e hera, do conquistador da India não é o mais proprio para umas lagrimas de dore dilaceração, que no rosto de Venus teem a mais irresistivel eloquencia.

O poeta todavia da-lhes um grande poder, e apenas correram ellas, Neptuno manda aos ventos que soprem com tal furia

« Que não haja no mar mais navegantes. >>

Emquanto prepara-se no fundo do oceano uma tão medonha tormenta, aos ventos que ainda soprão calmos seguem as velas portuguezas seu rumo desconhecido. A' bordo da frota as vigias afastam o somno contando historias maravilhosas, façanhas de cavalleiros andantes ; entre ellas o poeta escolhe para repetir ao leitor a dos doze de Inglaterra. Mal estava concluida a alegre

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narração de Velloso, quando todos adevinham o temporal em uma primeira nuvem negra.

A descripção d'essa tempestade que logo desaba com tal fragor, que representa

<< Cahir o céo dos eixos sobre a terra,»

é uma das maiores provas do genio imitativo de Camões: todos nos suppomos em um mar sem limites, e todos somos testemunhas de uma scena de desolação sem igual e da grande lucta dos elementos contra a idéa. Não é só a pintura do theatro: é tambem a da lucta que n'elle se trava e cujas alternativas acompanhamos, ora confiando que esses lenhos fluctuarão porque levam a civilisação, a sciencia, a liberdade e a arte, ora temendo que elles sossobrem, porque as forças da natureza são expontaneas e cegas!

O mestre manda amainar a grande vela, que pode submergir a náo, mas os ventos, não esperando pelo cumprimento d'essa manobra de salvação, dão n'ella e rasgam-na com um estrepito, que toma do scenario um echo ainda mais funebre. Eis os versos em que o poeta nos pinta esse primeiro quadro da lucta; não ha versos mais numerosos, nem de mais movimento e colorido. A nossa bella lingua, usada por um tal genio, imita os sibilos, o ruido, as harmonias do verso jonio em que Homero pintou o mesmo rasgar do panno sob a força dos ventos:

<< Não eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande, e subita porcella :
«Amaina (disse o mestre a grandes brados)
« Amaina, (disse) amaina a grande vella.

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