Não esperam os ventos indignados Que o mundo pareceu ser destruido. >> Passando á contar a afflicção que havia á bordo, e as manobras feitas para salvar as náos, o poeta mostra-se logo navegante que atravessou os mesmos perigos, e que os descreve com suas proprias lembranças. Que realidade em todos os movimentos! Logo que a vela rompeu-se, a náo tomou grande somma de agua « Alija, (disse o mestre, rijamente) Nada era possivel fazer; o leme desgovernava, os que foram dar á bomba cahiram com os balanços de bordo. Era uma angustia inexprimivel, mas tudo não estava perdido; as náos fluctuavam sempre. O poeta pinta-nos essa critica situação: vemos os navios no meio das ondas, ora afundarem tanto que parecem submergir-se n'ellas, ora subirem como se as ondas os tivessem impellido de si. Vê-se bem n'essa antithese, do infinito acceso em ira e da pequena náo querendo vencêl-o, que esta levava em seus flancos alagados, em seus mastros partidos, em sua bandeira rota, alguma cousa que não devia perecer! Nos altissimos mares, que creceram, Mostra a possante náo, que move espanto, Não está claro o contraste dos altissimos mares que cresceram com a pequena grandura de um batel? Não pode ser mais real a tormenta. A furia dos ventos e das ondas é sensivel ao leitor; o esforço dos marinheiros, os perigos das náos, tudo é dramaticamente pintado. Vê-se, primeiro, uma grande solidão de mar e céo, e no meio desse deserto de trevas, de agua, e de espumas phosphorescentes, as náos portuguezas. Já o quadro é digno de um grande pincel, sem que pintor algum possa descrever a fluctuação dos navios desnorteados com o movimento que teem nos versos do poeta. Ninguem que tenha contemplado de uma praia exterior a tempestade no mar lerá sem emoção o poeta; uma marinha feita com perfeição pode não lembrar-nos o mesmo quadro, que tenhamos na memoria; as oitavas do poema dão, porém, a nossas reminicenɔias, quasquer que sejam, uma forma harmoniosa, sob a qual ellas se perpetuarão. As scenas que nos descreve poeta são varias. Agora, é quasi pela madrugada, ainda que as nuvens negras façam parecer a noite mais comprida; os poucos reflexos da manhã entram por invisiveis intersticios no fundo escuro do horisonte. Parece isso aos navegantes a aurora boreal, e o poeta aproveita-se dessa illusão para dar-nos dois versos em que ha um effeito de luz admiravel: A noite negra, e feia, se allumia, Vejamos, porém, os accidentes do quadro. Não esquecendo o seu mundo mythico, e querendo mostrar-nos as aguas revolvidas até o fundo do mar pelos ventos em furia, o poeta pinta-nos os delphins buscando nas cavernas do oceano refugio contra a tormenta; os raios vertiginosos só servem para tornar mais profunda a treva; e as aves marinhas, que denunciam a terra, soltam seu canto triste. Ao longe encoberta pela treva está a terra da India, a terra promettida aos portuguezes pela intuição do infante D. Henrique, de Bartholomeu Dias, de Vasco da Gama e á qual elles queriam chegar ainda como naufragos. Os ventos, que levantam as ondas, devastam tambem a costa bravia, o mar atirado fóra de seu leito derriba as montanhas, as arvores seculares arrancadas pela força do temporal teem as raizes viradas para o céo. No oceano as areias são revolvidas até a superficie, e açoitam com furia as náos portuguezas! Eis a oitava em que todos esses effeitos da tempestade são pintados ao vivo, e como que renovados: « Quantos montes então que derribaram Qne nunca pera o ceo fossem vlradas; Nem as fundas areias que podessem Tanto os mares, que em cima as revolvessem. >> Essa pintura, a mais bella de nossa lingua, como descripção da natureza, faz-nos pensar no naufragio da costa de Cambodge. Involuntariamente se nos representa ao espirito o poeta, no meio dessa tempestade, heróe d'essa lucta, e só pensando em aproveitar-lhe a magestade selvagem para reproduzil-a no poema, que salvava das ondas! Vendo-se quasi perdido no meio da tormen ta Vasco da Gama dirige-se á Deus. Sua oração é tibia, imitada do hebraico, é uma d'essas preces em que se lembram ao céo os beneficios feitos á outrem, esperando-se ter a mesma fortuna. E' erudita de mais, não sendo até natural que em tal transe lembrasse-se elle das syrtes, das aguas erythréas, dos Acroceraunios, de toda a bagagem classica. A sua lamentação, porém, é elevada e eloquente. Depois de ter implorado, a divina guarda solta elle este grito de dôr, em que se vê o mais puro amor da patria e da gloria: 66 « Oh ditosos aquelles que puderam Esta oitava pinta do modo o mais pathetico a dôr de morrer desconhecido, dôr tanto mais profunda quanto vinha na vespera da immortalidade, e quanto essas mesmas ondas, que teriam de saudar o descobridor, no dia seguinte atirariam ás praias, buscadas com tantos perigos, o cadaver do naufrago! Continuava, porém, mais medonha a tempestade, e os ventos, « Como touros indómitos bramando, quando a estrella d'alva surgio no horisonte com leda fronte e scintillou no mar escuro. Venus, que a governa, mediu com um olhar os perigos de sua gente e determinou salval-a da cilada de Baccho. Para isso mandou ás nymphas pôr grinaldas de rosas e mostrar-se aos ventos com todas as seducções. Mal estes as viram, falleceram-lhes as forças, e exhaustos renderam-se aos pés das nymphas, como que presos em suas tranças. A queixa de Orithya á Boreas é de uma amante terna; devia Omphale fallar assim á Hercules. << Não creias fero Boreas, que te creio: : E' essa oitava a deliciosa expressão do amor que desarma a força é uma queixa suavissima como a que Dalila, murmurava aos ouvidos de Sansão quando elle volvia á sua tenda de juiz do povo, coberto do sangue da victoria! Como Boreas, Noto, e todos os outros ventos aplacados não sopram mais, escravos das nymphas e assim desfaz-se a tempestade ao poder de Venus. Genio admiravel o do poeta, que anima as cinzas do polytheismo, e tira d'ellas a mais bella allegoria do amor, que ha em lingua humana! Sereno o mar, calmos os ventos, a claridade da manhã deixa avistar no fundo do horisonte a penumbra da terra. E' a terra de Calecut, a terra da India, de que já se sente a aragem nas velas das náos, e a cuja revelação ajoelha-se o Gama, como se ajoelhara Colombo diante de um novo mundo. |