« Já a manhã clara dava nos outeiros, E' assim Venus a protectora dos portuguezes. No concilio dos deuses, quando as náos ainda estão na costa occidental da Africa, é ella quem defende a causa lusitana; quem salva a frota em Mombaça é ella, ella é quem obtem de Jupiter que a raça portugueza tenha seus gloriosos destinos, quem põe a frota do Gama no rumo das Indias, quem a salva da tempestade e mostra-lhe a terra promettida. Depois veremos que é ella quem recompensa todos os sacrificios d'essa expedição immortal, na Ilha dos Amores. E' Venus, pois, a divindade tutelar dos portuguezes. N'essa viagem de 1497 á busca das Indias vão o christianismo, a sciencia, as artes e a civilisação protegidas pelo amor. E' o mytho de uma harmonia mysteriosa que prepara as forças physicas para a expansão das idéas eternas. O que vai n'essas náos, á tomar posse do Oriente, é um principio, que tinha tido os seus martyres, mas que havia chegado no fim do seculo XV á hora de triumphar. As tempestades, as furias dos ventos e as correntes maritimas, tudo devia realçar com sua lucta a gloria do acontecimento, mas nunca impedil-o; os homens podiam duvidar, mas as náos, entregues ao oceano, seguiam o rumo de um novo mundo! São essas as conjecturas que fazemos para dizer que, se os Lusiadas fossem uma obra religiosa, seriam o poema de Venus. CAPITULO IV A ILHA DOS AMORES Nas ondas de um mar irritado, aos incertos clarões da lua que lucta com a nevoa, sem uma estrella no céo, que possa indicar seu caminho ao piloto: ó deuses immortaes, dizem os marinheiros, repouso, repouso!" (1) Mais do que repouso, pediam, porém, os intrepidos descobridores do Oriente. Tinham elles em alguns navios, perdidos na solidão de um mar desconhecido, dado um mundo á seu paiz, e voltando para o seio da patria, á reverem esses entes caros, cujas lagrimas o poeta recolheu para nos legar nas areias da praia de Belem, gozavam já de sua gloria, e com tanto prazer « Que o coração pera elle é vaso estreito. » Sabia o poeta que a patria é as vezes esquecida, e que de ordinario a gratidão tem má memoria, e por isso quiz elle mesmo saldar a divida nacional. Sabemos bem que os ousados navegantes que, chegando á Portugal, viram-se reduzidos á miseria e morreram em leitos do hospital, não tiveram (1) Horacio.-Ode XVI, liv. 2o. a recompensa de seu valor e de suas obras só porque o poeta conduzio-os quasi um seculo depois á uma ilha que nunca existio. Mas essa divida, que a patria esqueceu de pagar em vida, o poeta saldou-a sobre o tumulo dos velhos companheiros do Gama, e mostrou que taes feitos eram dignos não só de uma recompensa nacional, como de outra sobrenatural e divina. A ilha de Venus ou dos amores apparece no poema como uma antithese: é a antithese das tempestades, das traições, dos perigos atravessados pelos navegantes, e tambem a antithese das prophecias de Adamastor. Alguns tem censurado o episodio por vir depois de finda a acção do poema; vale o mesmo censurar Homero e os dois ultimos e grandiosos cantos da Iliada. Esses poemas nacionaes, que teem por objecto a gloria de um paiz, não estão sujeitos á pequenas convenções; o canto IX é o mais pittoresco, o canto X é o mais glorioso dos Luziadas. Já se viu que esse poema é um monumento levantado aos portuguezes; ora, com que direito se supprimiriam d'elle a apotheóse da ilha dos amores, as prophecias de Tethys que alimpam o futuro das nuvens sombrias com que Adamastor o carregára, e a grande galeria dos governadores da India, dos Pachecos, dos Albuquerques, dos Almeidas e dos Castros? Aquelle que quizer lêr o canto IX e conhecer sua verdadeira significação, lêa-o, como se lê o Cantico dos canticos. Sempre que uma descripção parecer-lhe demasiado realista, lembre-se de que o poeta fel-a ingenuamente e que a innocencia arrisca pinturas que só parecem licenciosas aos que teem o espirito prevenido. A geração actual, (e porque não dizermos : todas as gerações que succedem aos periodos ingenuos das litteraturas?) a humanidade há muitos seculos perdeu aquella pureza de sentimento esthetico, que distingue os tempos primitivos; o campo do bello está muito limitado; o preconceito, a prevenção, o falso pudor, as conveniencias innumeras das sociedades mais apuradas, as subtilesas monasticas, as invenções das côrtes dissolutas, o medo da verdade, a peneira das palavras, o celibato clerical, a sciencia anatomica, emfim as mais differentes causas produziram um estylo, uma pintura, uma poesia, uma arte hybridas. Os grandes genios, porem, não julgam que a copia da natureza possa degradar sua musa e que seja para elles um opprobrio pintar as paixões, que Deus creou. Como a forma humana tenha muita dignidade, deixam-a núa, sem pensarem que possa ser impudica uma creação que sabe de sua cabeça, pura como Minerva. Uma sociedade puritana, e, ainda mais, uma sociedade tartuffa podem não acolher a obra, mas essa creação ingenua de um espirito original terá sempre o valor de uma obra perfeita para os homens de bôa vontade! Os grandes poetas teem em si toda aquella primitiva expontaneidade que existia espalhada entre os homens. São sonhadores, que habitam o mundo de seus sonhos, povoado, como o paraizo antes da quéda, de entes puros; acceitam a natureza sem o crime; refazem a idade de ouro. As pinturas, pois, as descripções, que elles nos deixam, por mais núas que sejam, são sempre castas; não lhes atravessou o coração um só d'esses baixos desejos, que apparecem no do leitor severo. Se se não quizer entender assim, o Cantico dos Canticos não é um epithalamio, é um hymno bacchico; o paraizo das houris não é a allegoria do amor immortal, é um harem. Camões sobretudo soffreria com isso, porque muitos haviam de acreditar que n'essa lindissima descrição da ilha dos amores quiz elle pintar, como pensou alguem, uma d'essas estações dos marinheiros hollandezes, e que a recompensa que com todo o seu genio descobriu para os navegantes da India e para Vasco da Gama foram umas longas saturnaes. Estudemos, porém, o episodio como quem estuda o livro semitico dos cantares. Sente-se no poeta um certo desfallecimento ao chegar á essas alturas de seu poema; vê-se que está fatigado. Como quem fez bastante para a gloria de seu paiz e para a sua, tem elle vontade de deixar a penna, mas vê que a obra está incompleta de tudo aquillo que tem na cabeça e no coração, e começa de novo com um patriotismo que vence o desanimo e que lhe permitte elevar-se ainda em um de seus melhores vôos. ,,Nos poemas de longo folego, diz Horacio (1) é permittido um pouco de fadiga.,, Neste a fadiga não se trahe na forma: o divino Homero está mais experto do que nunca, não resona, agita-se, e é nessa colera que se sente que está um pouco fatigado e que brevemente vai dizer nos : Aqui, minha Calliope, te invoco N'este trabalho extremo; porque em pago (1) Arte poetica. |