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Venus para dar aos portuguezes a recompensa de seus altos feitos determinou fazer surgir no mar um encantado paraizo. A maneira porque ella nos apparece n'este canto é a mais simples e honesta.

« Em derredor da deusa já partida,
No ar lascivos beijos se vão dando:
Ella, por onde passa, o ar, e o vento
Sereno faz, com brando movimento. »

Imagem do amor e da belleza, deslisando entre os desejos lascivos, que não chegam até elles, como exhalações impuras que só envenenam os que as respiram!

O poeta transporta Venus no seu carro tirado pelas pombas, irmãs de Peristéra, aos montes idalios, á officina de Cupido. Essa concepção do poeta, bastante esquecida, é das mais finas e delicadas do poema. Sabem todos que a antiguidade representava o amante de Psyché sob a forma de um menino, armado de uma aljava cheia de settas; são essas settas que se preparam para elle nas montanhas de Chypre. Suppõe o poeta que, sendo todas as differentes affeições modalidades da mesma faculdade de amar, deviam todas pertencer ao dominio de Cupido. Aproveita elle a occasião para dar expansão á colera de que fallamos e tomar de repente a musa de Juvenal. Ao rei dá elle duas lições, ambas tão encobertas, que a pensão lhe veiu depois do poema:

<< Via Acteon na caça tão austero,
De cego na alegria, bruta, insana,
Que, por seguir um feo animal fero,
Fuge da gente e, bella forma humana.

Não se dirigem esses versos ao rei que não tinha outro divertimento senão os perigos e que

passava o anno nas coutadas de Almeirim e nas
monterias de Cintra, entregue nos intervallos das
caçadas á conversa dos frades, e fugindo, em seu
ascetismo, ás seducções das damas de seus
paços (1)? Se essa fabula de Acteon não tem por
objecto o joven principe, tambem não terá fallado
d'elle o poeta na estancia seguinte, quando zurzindo
os cortezãos, materia obrigada de todos os saty-
ricos, diz:

« Vê que esses, que frequentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente? >>

Linda parabola é essa, digna do Evangelho, e de que se não pode ignorar o sentido!

A oitava seguinte é uma cruel exprobação aos dominadores de seu tempo e tem expressa em dois versos a essencia de qualquer governo absoluto :

<< Leis em favor do rei se estabelecem ;
«As em favor do povo só perecem. >>

Era, porém, Camões um coração aberto ao amor; sua colera era passageira e logo voltava á calma mansidão de seu caracter, continuando a dar uma vida eterna aos objectos de sua admiração e de seu culto.

(1) Lourenço Pires Tavora nas suas confidencias á viuva do principe D. João, depois de louvar a boa disposição do rei e as prendas do seu entendimento,.... conclue que só o magoava não poder deixar de dizer que lhe notava « o não lhe parecerem tão bem as damas como elle lhe parecia á ellas. » — - Ver Rebello da Silva, Hist. de Port. Tomo 1° pag. 20.

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A officina de Cupido é de um custoso lavor litterario: dos meninos voadores, uns amolam o ferro das settas, outros a delgaçam as hasteas, e todos trabalham cantando uma melodia de uma toada angelica.

Eram tambem os corações, que, ardendo, davam o calor ao qual elles forjavam as settas; e, se temperavam os ferros, era nas lagrimas dos amantes. O poeta exprime essa idéa em uma estancia que é uma das peças mais bem acabadas do estylo allegorico da Renascença:

<< Nas fragoas immortaes, onde forjavam
Pera as settas as pontas penetrantes,
Por lenha corações ardendo estavam,
Vivas entranhas inda palpitantes.
As aguas onde os ferros temperavam
Lagrymas são de miséros amantes:
A viva flamma, o nunca morto lume,

Desejo é só que queima e não consome. >>

A fatalidade do amor apparece-nos nas oitavas seguintes, porque o poeta suppõe esses meninos, exercitando-se em atirar as flechas, e desses tiros desordenados nascem amores, nefandos uns, como o de Myrrha e o de Nino, desiguaes outros, como o dos deuses pelas pastoras, e o da mulher que tem a desgraça de amar alguem inferior á si, á sua condição, á seu espirito e á sua coragem.

Venus supplica ao filho que recompense os portuguezes

« Que veem de descobrir o novo mundo. »

Que doce e insinuante lisonja com que ella conclúe! Nos mais simples discursos do poema, vê-se

quanto Camões conhecia a arte de persuadir e de commover. Depois de ter dito ao filho:

«No mesmo mar que sempre temeroso

Lhes foi, quero que sejam repousados, >>

continúa ella á descrever seu intento; renova o pedido de que a recompensa lhes seja dada no mar...

<< onde eu nasci...

e como se ainda não bastasse, dirige á Cupido essa tocante lisonja:

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<< Mal haverá na terra quem se guarde,
Se teu fogo immortal nas aguas arde. »

Cupido, porém, não se anima á realisar sosinho tão vasto commettimento e pede o concurso da Fama que algumas vezes, como diz elle, serve, outras prejudica o amor. A Fama corre pelo oceano annunciando o nome portuguez e já

« O peito feminil que levemente

Muda quaesquer propositos tomados, >>

inclina-se á amar,, tanta fortaleza. "As settas de Cupido começam á cahir no coração das nymphas, que já lançam ardentissimos suspiros,

«Que tanto com a vista pode a fama. »

Venus, porém, traz sua ilha e quando ella nos apparece em uma extremidade do horizonte, alvejam na outra as vélas das náos portuguezas, que demandam a patria. A ilha balança-se nas ondas, como Delos, e segue á tomar a prôa da armada luzitana; précisava esta de supprir-se de agua para a viagem, e assim logo que a ilha foi avistada dos navegantes, Venus pol-a immovel no meio do

oceano.

A narração do poeta é muito rapida, os versos são muito numerosos, há sempre tal naturalidade de expressão, tal abundancia e suavidade de rimas, que todo esse episodio parece uma só melodia, um canto de serêa, um conto oriental escripto com as mais doces palavras do Coran.

Começa aqui a descripção da ilha. E' a estancia LIII. O poeta quiz pintar um terreno encantado, onde todos os primores da natureza estivessem reunidos, onde todas as galas da creação espalhadas pelo mundo se achassem á um tempo, um paraizo do qual se podesse dizer-esta é a patria do amor! A pintura correspondeu ao intento, devendo-se affirmar que nenhum poeta nos legou uma creação mais pittoresca, mais viva, mais real do que essa. Todos imaginamos no meio do oceano um torrão delicioso em que as aguas, a verdura, os montes, as flores, a vinha, as aves, tudo tem a mesma pureza, as mesmas tintas, a mesma mobilidade, a mesma luz, que as aguas do Cedron, a verdura e os montes do Libano, as flores e a vinha de Engaddi, as aves e os horizontes do Hermon. Parece-nos que o poeta creou um novo paiz do Cantico dos Canticos, e depois de tantas tempestades, de tantas sombras, de tão crueis.prophecias, repousamos a imaginação sobre essa outra Delos, com o prazer com que imaginamos um oasis no Sahara e a caravana quasi morta pizando a herva fresca e bebendo a agua chrystallina.

Desde a costa a ilha é uma deliciosa morada. Na enseada curva e quieta, a areia é pintada de conchas ruivas; tres outeiros formam o primeiro horizonte e em suas linhas fluctuantes vê-se um que de suberba e de graça; a agua mana-lhes do

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