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mas essa estancia, como nos foi transmittida, não é de Luiz de Camões, é dos frades dominicos.

Fallando d'ella diz Manoel Corrêa:, E assim como aqui vão impressas, as tinha emendadas por conselho dos religiosos de S. Domingos“. Em vez de conselho, deve-se ler-ordem-, porque esses amaveis conselheiros eram o Santo-Officio!

O bispo de Vizeu pensa que os frades dominicos, sendo-lhes impossivel refazer o canto IX, limitaram-se á retocar estancia LXXI; a nós parece que esse retoque foi prejudicial ao poeta, e que o falso pudor da Inquisição legou-nos uma pintura lasciva em vez da que nos queria deixar o genio casto e limpido do grande poeta.

Para conjecturar á favor do Santo-Officio, funda-se elle na consideração que lhe merecem esses homens severos; para conjecturar a favor do poeta, fundamo-nos na elevação do genio de Camões.

A descripção da ilha dos amores é, em nosso entender, superior á do palacio de Armida; Tasso recorreu á creação do poeta portuguez, imitou-a, mas não foi tão feliz.

O palacio de Armida é um sitio phantastico; sente-se n'elle um poder invisivel; parece-nos uma d'essas cidades que nos contos arabes formam-se á voz de um magico, e em que ha o silencio, a immobilidade, a tristeza de um encantamento. Os jardins de Armida são tristes; esse passaro que canta a canção da rosa :

« Cogliam d'amor la rosa: amiamo or, quando
Esser si puote riamato amando. »

« Colhamos a rosa do amor. Amemos, porque, amando, podemos (ser ainda amados, >> lembra-nos bem que somos objecto de uma illusão.

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Essa natureza é morta, debalde o poeta quer darlhe movimento; o lago não tem fluxo, é o lago Stygio; as flôres não murcham, são eternas... eterni fiori. Ginguené disse que Tasso tinha copiado os quadros dos outros pintores e tirado d'elles o que ha de melhor no seu. Camões, porém, copiou da creação, e por isso deu á sua ilha uma natureza vivaz, opulenta e encantadora, no seio da qual poder-se-hia ter posto o berço do amor.

Mas o poeta pretende que essa deliciosa creação seja uma allegoria da gloria e da immortalidade, e elle tem o direito de ser acreditado quando explica-nos o seu pensamento. Porque se lhe ha de dizer: „,não, não pensaste assim, não foi essa tua idéa" quando elle nos diz:

«Que as nymphas do oceano tam fermosas
Tethys, e a ilha angelica pintada,

Outra cousa não são, que as deleitosas
Honras, que a vida fazem sublimada.
Aquellas preeminencias gloriosas,

Os triumphos, a fronte coroada

De palma, e louro, a gloria e maravilha,
Estes são os deleites d'esta ilha. » ?

O poeta podia ter pintado com enlevo e amor um paraiso terreno, e ter d'elle feito a allegoria da. gloria. O que ha n'isso de contrario ás regras da arte? As religiões não se servem da allegoria e da parabola? A poetica de Dante não usa á fartar dos mesmos recursos ?

Se o poeta não nos tivesse deixado a interpretação de seu pensamento, ainda ella ressumbraria do poema. Que pudera ser essa ilha pintada com côres tão ricas? Um lugar de embriaguez, de pra-zeres, de amores faceis, uma estação de torpezas, como o pensou Voltaire, dos marinheiros hollan

dezes? A descripção é muito casta, muito idéal para um só momento admittir-se a possibilidade de semelhante conjectura.

A ilha de Venus é uma imagem do paraiso musulmano, ou dos Campos Elyseos.

O poeta não quiz conduzir os seus heróes ao inferno, como o havia feito Virgilio; mas como era preciso corôar o poema com as mais bellas perolas da gloria lusitana, e desfazer a impressão das tristes prophecias de Adamastor, achou elle meio para conseguil-o, dando ao mesmo tempo a immortalidade aos ousados navegantes. Esse recurso original foi a ilha dos amores, uma estação risonha da eternidade, em que elle figurou os descobridores da India já cercados de sua auréola.

Todas as religiões representaram sob uma fórma sensivel as delicias da segunda vida; todas crearam um paraiso, cheio de agua, perfumes, luz e harmonias em que se escoa a vida sem fim dos bemaventurados; poder-se-hia perguntar aos que nos fallam d'esse paraiso, como a alma pura póde gozar d'essas sensações, e como o espirito póde sentir o aroma dos olivedos eternos, o brilho ardente do sol, o doce ruido das aguas, a embriaguez do nectar e da ambrozia, a musica das citharas celestes. Essa primavera sem fim dos Campos Elyseos, como a intelligencia, na simples posse de sua idéa e de sua intuição, póde sentil-a sem vêl-a, sem ouvir os seus rumores, sem aspirar suas exhalações? Mas nós sabemos todos que essa é a allegoria da vida no absoluto; que esse paraiso, que uns queriam encontrar nas ilhas afortunadas, outros na ilha Leucé, é a patria da alma, o encantado momento em que ella torna ao seio do infinito.

Tambem o Tartaro, em torno do qual o Phlegtonte apertava seu cinto de chammas, é o exilio do homem máu, a pena eterna de sua separação do idéal.

O Eden, de que se procuram as ruinas na antiga Media, o que é senão a allegoria dos tempos primitivos, do tempo da expontaneidade, da virtude, em que o homem tomava pelo coração posse dos céos? e no entanto não se procura no mappa o lugar em que elle existiu e não se pensa que esses rios que o cortavam são os grandes rios da Asia menor, como se em um terreno todo moral, como o de uma antiga sociedade, fossem esses rios mais do que a imagem de quatro grandes sentimentos, que o fecundassem e depois desapparecessem na esterilidade do deserto?

Se por imagens tão sensiveis, representou-se a immortalidade da alma, porque não poderia o poeta representar a da gloria? Tanto mais direito tinha elle de fazel-o quanto a intervenção do maravilhoso dava á essa gloria o caracter de um dom superior e confundia a ingratidão de seu tempo e de seu paiz. A ilha dos amores apparece no fim dos Lusiadas como a apothéose antiga. E' ella no mar das Indias a imagem d'essa estrella em que Dante encontrou os homens sublimes que tinham buscado avidamente a gloria! (1)

Qualquer que seja a interpretação d'essa concepção unica em nossa litteratura, ella será sempre

(1) Paraiso.-Canto VI.

uma das mais bellas concepções do espirito humano. E' um idylio, uma paisagem deliciosa; sente-se, atravéz dos versos do poeta, o perfume das moitas em flôr exhalando-se á noite nas praias arenosas; sente-se a suave temperatura da muita sombra, que havia no paiz; ouve-se o rumorejar da agua, o canto terno das aves, os saltos apressados da gazella. Talvez alguem que não possa recompôr com a imaginação o sitio que o poeta teve na sua, quando nos deixou essa pintura, supponha que queremos ser pittoresco; a ilha de Venus, porém, tem para nós, a vida, o movimento, a frescura de um d'esses sitios poeticos de que se guarda reminiscencia, e de que se acredita algumas vezes sentir o aroma longinquo trazido por uma brisa do mar. E' a illusão da saudade!

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