PARTE QUARTA A LEGENDA HISTORICA CAPITULO I IGNEZ DE CASTRO I Ignez de Castro! tal é o nome por que se conhece um dos episodios do poema. Todos sabemos de cór essas eloquentes estancias, as mais tristes dos Lusiadas, e por ellas todos conhecemos a historia d'essa moça infeliz, dedicada amante e mãi, que o amor do rei D. Pedro devia fazer rainha annos depois da morte. Nenhum facto é mais dramatico do que o acontecido em 7 de Janeiro de 1355 nos paços de Coimbra; nenhum tambem inspirou mais tragedias. Mas como foi impossivel a Silvio Pellico attingir a creação ideal de Dante, chamada Francesca di Rimini, assim tem sido impossivel aos nossos autores tragicos igualar a narração de Camões. Era D. Ignez de Castro de uma nobre e real familia. Tendo vindo de Hespanha como donzella da infanta D. Constança, noiva de D. Pedro, distinguiu-se por uma extraordinaria belleza. O retrato que temos a vista não dá senão imperfeitamente idéa do que devia ter sido como formosura, essa infeliz princeza (1). A physionomia é antes de umacreança ingenua que de uma mulher já no inteiro desenvolvimento de suas fórmas e de sua belleza. O rosto oval e comprido tem todavia um ar de recolhimento, pelo qual se póde adevinhar um coração capaz de gozar em silencio e de ser feliz sem ruido. E' elle sustentado por um pescoço alto e nevado, que fez cognominar a princeza-collo de garça. Os cabellos finos e abundantissimos estão dispostos á moda do tempo. A fronte é larga e pura, a bocca é pequena e discreta, os olhos não teem outra expressão senão a da ingenuidade. Não se pode dizer á que epocha da vida da princeza corresponde esse retrato; parece, porém, ser elle uma lembrança de sua mocidade, e referir-se ao tempo de sua vinda á Lisboa. Aquelle ar de innocencia e de singelesa espalhado sobre a physionomia de D. Ignez póde bem ter sido uma invenção do pintor que quizesse represental-a como o poeta. A' ser assim, porém, o artista não comprehendeu Camões. A Ignez de Castro dos Lusiadas é a innocencia, sim, é a fraqueza, que estas duas palavras exprimem completamente: a misera e mesquinha; mas é tambem o amor, que é a força. Ora n'essa phy (1) E' que se vê no livro-Varões e donas illustres etc. sionomia, que analysamos, todo o ideal é de candidez, de ingenuidade, ou, para melhor dizermos, de adolescencia; não ha o ideal do poeta, o amor cheio de energia e de heroismo mesmo diante da morte. O retrato de Alcobaça talvez exprima melhor essa feição de Ignez de Castro. O outro nada nos diz do caracter de uma belleza, que tanto dominio teve sobre o principe, e que foi causa de uma tão deploravel catastrophe. Resignemo-nos, porém, á imaginar o que teria sido a formosura da princeza. Quantas mulheres, que ainda hoje são adoradas, vivem para nós em uma tradição poetica ou popular tão bellas como se possuissemos suas imagens? Quem viu as Helenas, as Saphos, as Didos, as Lucrecias, as Cleopatras além das gerações, que ellas fascinaram e ás quaes sobrevivem? Baste-nos tambem para conhecermos Ignez de Castro a apostrophe de Camões: « Estavas, linda Ignez........, » e colloquemol-a n'essa galeria de mulheres celebres, cuja bellesa é só attestada pelo amor que souberam inspirar. Vivamente apaixonado da joven donzella de D. Constança, e collocando seu amor acima das tradições do throno, o principe D. Pedro desposou-a secretamente perante D. Gil, bispo da Guarda. Tinha D. Constança morrido em 1345. Nada faz conjecturar que em vida d'ella fosse D. Pedro amante de D. Ignez; a pureza mesmo d'esta faz-nos crer em sua lealdade para com a infeliz rainha, sua amiga, sua protectora, sua companheira de mocidade e de sonhos. Morta, porem, D. Constança, o amor de D. Pedro não teve mais que refrear-se, nem Ignez teve de secrificar-se á um tão cruel, quanto sagrado dever. Temendo o ruido da côrte e as distracções da vida do paço, o principe fez sahir para Coimbra aquella que elle amava e que o amava ainda mais, para pedir-lhe o throno e a corôa. Passaram-se de 1345 á 1355 dez annos. Para não haver a menor sombra de profanação, demos um anno ao luto por D. Constança: são nove annos, de amor, de poesia e mysterio, que se escoaram nos paços de Coimbra. Durante elles a princeza chegou á toda a expansão de sua belleza: que melhor orvalho para esse lyrio de alvura e de graça que os risos de contentamento e as lagrimas de saudade que descobria no rosto do principe? que melhor atmosphera para crescer, em seu viço e seu perfume, que essa dos paços de Santa-Clara onde tudo era silencio, menos a voz do amante, onde era tudo solidão menos a imagem d'elle, presente sempre á seus olhos ou á sua memoria? Nós não temos por certo o direito de desvendar os segredos de um amor, que procurou o isolamento e a sombra, que viveu de felicidade e não de vaidade, que escondeu-se e não ostenton se, que cresceu durante nove annos tanto, que, decorridos elles, parecia ainda eterno, que atravessou a mais triste das tragedias humanas e sobreviveu ao tumulo! Os rivaes da familia dos Castros, que parecia dever ser chamada á alto valimento no reinado do marido de Ignez, convenceram o rei D. Affonso IV de que a salvação de seu filho e da dynastia dependia da morte da princeza. Como partira outr'ora contra os mouros, partiu D. Affonso de Montemor para Coimbra; seguia-o a mesma caval laria, que levara á Tarifa; no peito batia-lhe o mesmo coração, que fel-o encurtar os dias de seu pai e perseguir seu irmão. N'esse tempo não era D. Ignez só a amante do principe, era sua mulher. Uma duvida suscitou-se algum tempo sobre esse casamento. Se as outras provas historicas não bastassem, a ceremonia de Alcobaça diria tudo por si só. Quem desposa o cadaver, onde o ultimo signal de vida apagou-se desde muito, desposaria o corpo animado da mais pura belleza. Quem vai arrancar á um tumulo os restos da mulher amada para trazel-a ao throno, iria buscal-a á seu retiro para coroal-a entre a adoração de todos. A trasladação deixa imaginar o que seria a coroação. Demais, durante quatorze annos, conheceu D. Pedro a alma e o coração de D. Ignez; durante nove, gozou de toda a felicidade de seu amor. Em todo esse tempo, que valiam para elle os paços reaes ao lado do encantado asylo da innocencia de seus filhos ? Deveria desherdal-os, crear contra si no coração d'elles ciumes e prevenções, quando sua razão lhe dizia que Ignez de Castro traria para seu reinado uma grande força? Não lhe levava ella o amor, a virgindade de coração, a dignidade e a legitimidade da familia? Tudo nos leva a crer que era ella a mulher de D. Pedro, quando foi apunhalada sob as vistas de D. Affonso IV. O heróe de Tarifa manchou em um momento os louros da victoria no sangue do mais barbaro assassinato, que um rei, um homem, um pai já commetteu. E' esse facto, tão cheio de dôr ainda hoje, que o poeta nos pinta em versos admiraveis. N'essas |