Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

poucas estancias destacam-se, como si se movessem, os personagens da acção. A figura do velho rei é pouco firme, pintada á duas côres; mas n'essa vacillação do poeta deve ver-se a sinceridade de sua alma: quiz elle attenuar o crime do rei, mas não poude; Camões era, mais que tudo, um homem de coração.

Se o vulto de D. Affonso é assim incerto, o de D. Pedro é cheio de ardor, e o de D. Ignez tem proporções idéaes. Vejamos como o poeta nos conta esse triste desenlace de um amor que tinha pleno direito á felicidade. Vamos assistir ao mais doloroso martyrio.

II

O poeta começa por uma apostrophe, que pinta logo a situação da alma da princeza, a epocha da vida, e a immensidade de seu amor e de seu infortunio. Estamos em Coimbra, no Mondego. Em tão delicioso retiro vive embebida em um unico pensamento a amante do principe. Os horisontes de sua vida são serenos e puros. Como essas aves brancas que vemos fluctuando por um céo sem nuvens sobre um lago de anil, descortina ella um futuro tão limpido como o passado que tem na memoria. Em sua alma,-refracção de um raio divino, a esperança tem a mesma côr da saudade. E' assim que ella é sorprehendida :

«N'aquelle engano d'alma ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito. >>

Doce e mysteriosa expressão! em que alguns teem querido ver a illusão do amor, mas com que o poeta quiz mostrar a cegueira da innocencia que confia na justiça.

Não podia elle referir-se ás decepções do coração; a confiança de Ignez em seu amante não murchou nunca, nem foi uma illusão, um engano d'alma; antes foi ella que mitigou o soffrimento de seus ultimos instantes, como uma flôr que désse o seu melhor perfume no momento de desfolhar-se. Nos paços de Coimbra, longe de seu marido, derramava a infeliz essas lagrimas de saudade que nenhum fel teem e que não azedam o coração, e vivia absorvida na felicidade de seu amor. Eis a primeira estancia em que está elle gravado para

sempre:

« Estavas linda Ignez, posta em socego
De teus annos colhendo doce fruito,
N'aquelle engano d'alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito ;
Nos saúdosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuito,
Aos montes ensinando, e ás hervinhas,
O nome, que no peito escripto tinhas. >>

A' tal amor corresponde o do principe. Ausente, leva elle impressa na alma a imagem de Ignez; no serviço do paiz, não esquece aquella que é a patria de seu coração, nem o retiro onde ella se expande. Para lá volve sempre os olhos, lá deixou a alma:

<< Do teu principe alli te respondiam

As lembranças, que n'alma lhe moravam ;
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus formosos se apartavam;
De noite em doces sonhos, que mentiam,
De dia em pensamentos, que voavam;
E quanto enfim cuidava, è quanto via,
Eram tudo memorias de alegria. >>

Sublime communicação de duas almas, que se seguiam com o pensamento por toda a parte, que tinham só uma memoria e um unico futuro, e que, quando desviavam a attenção uma da outra, era para encontrarem-se ainda, como um mesmo raio de luz, sobre a cabeça loira e innocente de seus filhos.

Esse amor, porém, tão feliz devia ser a desgraça de Ignez, se se póde chamar desgraçada aquella que durante dez annos foi amada com excesso, que teve a maior parte de felicidade que se póde ter no mundo, que morreu na flôr de sua bellesa e na confiança de sua alma, que não sentiu cahirem á seu lado (triste privilegio dos que teem o de uma longa vida!) os objectos amados, e que depois da morte teve seu nome tornado em lenda, e a fama de seu amor immortal nas mais bellas estancias de sua lingua!

Era na embriaguez d'esse longo noivado que D. Ignez devia ser assassinada aos olhos de seu sogro. Ahi vem perante o algoz a victima innocente; á seu aspecto, ao de seus filhos, quer perdoal-a o rei,

«Mas o povo com falsas e ferozes
Razões, a morte crua o persuade. >>

O povo! desde quando expia o povo o crime dos reis ? O coração real devia ter sensibilidade; não devia tel-a o coração do povo, aberto sempre á misericordia, á justiça, ao perdão, ao amor. Não: o povo portuguez não foi quem matou Ignez de Castro, Affonso IV não foi o Pilatos d'esse martyrio. Se o povo lá estivesse, a victima pelo menos teria arrancado lagrimas. Quando Iphigenia, diz

Lucrecio, subiu ao altar de Diana, o povo que a cercava debulhou-se em pranto:

« Aspectuque suo lacrumas effundere civeis (1) »

Não moveria a mesma sympathia essa outra Iphigenia? A filha de Agamemnon morria victima da superstição religiosa, Ignez de Castro da superstição dynastica; Iphigenia era sacrificada por seu pai, não podia Ignez dar o mesmo nome ao avô de seus filhos ? Ambas morriam na flôr da idade, no tempo dos amores, ambas hostias immaculadas!

«Sed casta inceste, nubendi tempore in ipso,
Hostia concideret mactatu mæsta parentis. »

Accusada, porém, e ameaçada não pensa Ignez em si desinteresse do amor que diante da morte chega ao heroismo.

«Ella com tristes e piedosas vozes

Saidas só da magoa e saudade

Do seu principe, e filhos, que deixava,

Que mais que a propria morte, a magoava. »

Os dois versos, de Virgilio, traduzidos aqui pelo poeta, teem um valor original, e esse provém da posição de Cassandra e da de Ignez. (2)

(1) De rerum natura, liv, 1, v. 92.

(2) Virgilio disse :

« Ad cœlum tendens ardentia lumina frustra,
Lumina: nam teneras arcebant vincula palmas, »

e* Camões:

<< Pera o céo crystalino alevantando

Com lagrimas os olhos piedosos;

Os olhos, porque as mãos lhe estava atando

Um dos duros ministros rigorosos. »

A filha de Hecuba apparece-nos, no canto da Eneida, arrancada do templo de Minerva, com os olhos ardentes de colera, mas perde-sc logo no meio d'esse desmoronamento espantoso da cidade de Neptuno. E' mais uma captiva que vemos sahir ds Ilion para a tenda dos gregos. Ignez, porém, não levanta olhos colericos, levanta olhos piedosos'; não os fita em um céo, povoado de deuses inimigos. de sua patria, e onde já se desenham as fitas vermelhas do incendio de seus palacios. Não é a provocação de uma prophetisa inspirada de Apollo, é a oração de uma martyr christa. O que dá grande valor á idéa, é a continuação do quadro. Depois que ella levantou os olhos ao céo, abaixou-os sobre os filhinhos,

«Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orphandade como mãi temia. >>

Pintura singela de uma oração feita em um olhar a oração das mãis!

Em quatro estancias falla Ignez ao avô cruel de seus filhos. Quem não as leu ainda e não as sabe de cór? Como pinta ella o principio de seu amor e o amor do principe que a tinha vencido como pede compaixão já não por si, mas por seus filhos: como exprobra ao rei não saber perdoar quem não é culpada: como lhe pede que a desterre para o meio das feras, que terão mais coração que os homens, que ella viverá com a saudade eterna d'aquelle por quem vai morrer! E' ao ler essas estancias que se sente todo o poder da poesia. Ha tres seculos foram ellas escriptas e ninguem póde lel-as sem sentir uma grande compaixão. Nunca o li, diz um critico fallando do episodio e fazendo

[ocr errors]
« VorigeDoorgaan »