honra a sua sensibilidade, que não chorasse. (1)" Não; essa linguagem divina não foi a da princeza. Se uma tal eloquencia lhe tivesse vindo aos labios...., iamos dizer: ella não morreria, mas era á feras que ella supplicava. As estancias seguintes do episodio são o desenlace; é o assassinato. Em um momento vemos os cavalleiros portuguezes atirarem-se sobre a infeliz senhora, e atravessarem-lhe o seio, encarniçados em um odio que a morte mesmo não applacava. Depois de tanta desgraça ainda a lyra do poeta nos repete os ultimos ais de Ignez, como vozes sahidas da fresta de um tumulo. Pinta-nos elle a brancura marmorea de seu collo de garça; mostra-nos as flores, que tantas vezes ella regara de seus olhos, ora banhadas em sangue; descreve-nos a agonia da joven martyr, cuja bocca ao resfriar-se para sempre ainda articulava o nome de seu amante, que o echo levava por todos os valles onde elle havia outr'ora soado; faz-nos por fim a pintura do corpo já sem vida, do qual a alma tinha-se exhalado em uma respiração doce, e que jaz pallido, como a bonina maltratada das mãos lascivas da menina que a colheu ! Tudo isso é tocante e não sabemos como se possa commover mais! Quanto a nós, porém, a estancia mais dramatica do episodio é a que assim começa: « Qual contra a linda moça Polyxena. >> Entre tautas martyres, como Ignez, buscou o poeta, para comparar suas duas mortes, a infeliz troiana. (1) F. Dias Gomes. Polyxena é uma das mais bellas tradições da Grecia, e quasi todos os grandes poetas, desde Euripides até Ovidio, honraram-na em seus versos. Se lemos, porém, a Eneida, o infortunio de Andromaca é tão grande que invejamos para ella a sorte, que em sua desgraça ella acha brilhante, de Polyxena. Ella mesma o diz: oh! feliz entre todas a filha de Priamo, condemnada á morrer debaixo das altas muralhas de Troia, sobre o tumulo do inimigo, sem ter soffrido a perseguição do destino, nem partilhado como escrava o leito do senhor! " Esses admiraveis versos, porém, não nos mostram Polyxena diante da morte; precisamos de vêl-a em Seneca e em Ovidio. Na Troades caminha ella para a morte com passo firme e modesto. Sua belleza resplandece aos ultimos raios da vida, como a luz do sol que ainda é mais suave no momento em que elle se deita no poente. « Ut esse Phoebi dulcius lumen solet Chegada ao lugar do sacrificio, não recua ella um passo, antes olha para seu algoz com um olhar de feroz ameaça, em que scintilla o odio da escrava. Quando este mergulha-lhe o ferro no seio, ainda não desanima ella, mas, supremo esforço da colera! reune suas forças e atira-se com impeto sobre o tumulo para fazer a terra ainda mais pezada ao somno de Achilles. Tal é a scena que nos pinta com uma grande verdade o poeta latino. A Polyxena de Ovidio é outra; tem ella tambem a energia das mulheres antigas, mas não odeia: chora e talvez ama. Seu ultimo pensamento é de libertação. Entre viver escrava e morrer livre e pura, a morte lhe parecia um favor, quasi um bem. Dir-se-hia que ella queria morrer sobre o tumulo do heróe que a havia amado. Não o chama ella: um deus? Condemnada ao supplicio, só pede aos gregos que respeitem a virgindade de seu corpo, que nunca sentiu o contacto das mãos de um homem, e entreguem-n'o depois á sua mãi, que só poderia resgatal-o com lagrimas, ella a viuva de Priamo! Logo que chega o instante fatal, e todos, mesmo Pyrrho, desatam em pranto, Polyxena não chora mais; filha de troianos devia mostrar aos gregos que não temia a morte, e que se tinha chorado fôra pela sorte de sua cidade arrazada, de sua familia dispersa e de sua mãi infeliz! No momento de morrer esquece ella tudo para honrar o seu nome; tambem não cahe sobre o chão para opprimir com o peso da queda os manes de Achilles; sua morte é outra os joelhos vão cedendo, e, com os olhos voltados para o céo, ajusta ella as roupas para cahir, (tanto póde o pudor em uma natureza como a sua!) immaculada de qualquer olhar, digna de seu sangue! E' á essa adoravel figura que Camões compara Ignez. Ella que tanto chorou, que tanto pediu, sempre nobremente! nos ultimos instantes recolhe tambem a dôr e serena o semblante com o olhar. << Ella com os olhos, com que o ar serena. » E' assim que Ignez espera a morte, << Bem como paciente e mansa ovelha, » e n'ossa postura de suprema energia recebe no collo de alabastro as espadas dos assassinos. Tal foi em vida, tal na morte, D. Ignez de Castro. A historia tem na sua galeria o retrato que d'ella fez o poeta ; tambem entre as martyres nenhuma inspira mais compaixão do que essa, desde Iphigenia, que abre o cerco de Troia, até Joanna d'Arc e Maria Antonietta. Nunca o genio é mais digno de si e de Deus do que quando idealisa a innocencia e a desgraça! Não deixou Camões sua creação de Ignez de Castro sem levantar-lhe um monumento na terra da patria. Mas como podia fazel-o quem não possuia quatro palmos de chão, onde ser enterrado? O primeiro architecto, o primeiro esculptor da gloria nacional, só tinha para pagar aos objectos de sua admiração a moeda do genio-a immortalidade. A' Ignez de Castro, porém, pagou outra. Ha em Coimbra, no antigo jardim da princeza uma fonte chamada-dos amores. Para que ella lembrasse eternamente o facto, deu-lhe o poeta uma origem sobrenatural. Foram as lagrimas choradas pelas filhas do Mondego sobre a sorte da joven martyr do amor, que se transformaram na agua pura d'essa fonte. As lagrimas das donzellas de Coimbra muitos as choram ainda hoje, e mais que no crystal da fonte em que se converteram, brilham ellas, como diamantes, na elegia do poeta, n'esse cantico de dôr o mais vivo de nossa lingua, n'esse poema de dezoito estancias, que parece escripto com o sangue mesmo do amante de Catharina. CAPITULO II OS DOZE DE INGLATERRA Não era possivel que faltasse ao poema de Camões uma inspiração, um quadro da idade media. A idade media apparece na historia como um tempo sombrio, como uma grande noite. Uma invasão de barbaros cobre o mundo pagão e esconde em sua poeira as lettras e as artes. O que se faz durante esses dez seculos que se chamam -a idade media? Uma formação, a creação do mundo moderno sobre as ruinas do mundo antigo. Entre as duas civilisações há a infancia; entre os dois zeniths há a treva. Durante dez seculos amontoam-se, atropellam-se, e depois assentam, desprendem-se e desenvolvem-se os elementos das nações de hoje. Mas por ser a idade media esse longo e sombrio periodo de formação, é que tem muitas vezes os sentimentos ingenuos da adolescencia. A mais alta manifestação d'essa generosidade, d'esse viço de alma, d'essas aspirações ideaes foi a cavalleria; foi ella, em epochas de embrutecimento, o glorioso protesto do coração contra a força. A historia demonstra que a cavalleria não teve a extensão de uma instituição universal de honra e de valor; mas |