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reduzida mesmo á alguns povos, ou á algumas almas, provou que havia aqui e ali em tempos tão sombrios uma claridade prematura.

O episodio dos „, doze de Inglaterra " é a alegre narração de um dos factos mais notorios da cavalleria.

Doze inglezes de alta posição offenderam outras tantas damas, mostrando-se promptos á renovarem a injuria perante quem ousasse defendel-as. Não houve em Inglaterra quem quizesse aceitar a defesa das damas, e o duque de Lancaster, sogro de D. João I, dirigiu-se á doze fidalgos portuguezes pedindo-lhes que fossem os cavalleiros das senhoras offendidas. Aceito o cartel, teve lugar o combate dos pares de Inglaterra com os cavalleiros portuguezes, que ficaram vencedores. Entre estes é á frente d'elles achava-se Alvaro Gonçalves Coutinho, por cognome Magriço.

Nenhum facto era mais apropriado do que esse para pôr em evidencia a gloria de Portugal, e o poeta fel-o da maneira a mais insinuante.

A offensa feita pelos cortezãos ás damas da côrte era a primeira violação das regras da cavâlleria, que impunha respeito á mulher quasi com o mesmo rigor com que o impunha á fé e á honra. O que, porém, está, em frente d'esse mesmo codigo, acima de qualquer censura é a cobardia dos amantes d'essas damas, que por se temerem do poder dos adversarios, não ousaram a levantar a luva atirada com tanto desdem. O poeta não podia dizer-nos melhor do que por essa fórma que a Inglaterra nunca foi o paiz da cavalleria. Se vemos na sua historia um Ricardo Coração de L eão e um Principe Negro, são esses excepções notaveis e

para cujo caracter concorreu poderosamente a vida aventureira do continente.

Emquanto nos pinta assim a Inglaterra, o poeta faz em uma oitava o mais alto elogio á côrte portugueza; n'esta todos julgam uma felicidade ser escolhido para um tal combate. O rei é o primeiro que quer partir, e n'esse movimento de generoso ardor vê-se logo a alma de D. João I.

Eis a oitava em que nos apparece a côrte do Mestre de Aviz :

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«Já chega a Portugal o messageiro;
Toda a corte alvoroça a novidade;
Quizera o rei sublime ser primeiro,
Mas não lh'o soffre a régia magestade
Qualquer dos cortezãos aventureiro
Deseja ser, com fervida vontade;
E só fica por bemaventurado

Quem já vem pelo duque nomeado.

Tudo que havia de puro, de elevado e de nobre na cavalleria reunia-se n'esta memoravel empreza. Quando realisou-se ella, o cyclo legendario da instituição estava encerrado; mas as antigas virtudes e os finos sentimentos existiam ainda em algumas almas. Iam esses cavalleiros portuguezes combater em um paiz distante com os mais esforçados e dextros dos seus homens de armas, e no entanto nenhum d'elles hesitou.

O valor puro e sem mescla, de que os antigos paladinos haviam dado tão notaveis exemplos, é a primeira qualidade que dá o poeta aos heroes portuguezes; a segunda é porem-no ao serviço de uma causa nobre, sem indagarem da latitude e distancia dos lugares, onde tinham que defendel-a. Foi a cavalleria uma religião forte e moral, religião de poucas almas, sim, mas que unia todos

os seus crentes sob uma mesma bandeira e que fel-os, em tempos em que a idéa da patria não se tinha completamente desprendido dos preconceitos, dos odios e das divisões feudaes-, membros de uma unica familia. O respeito, o culto da mulher, que uma nação moderna, os Estados-Unidos, elevou á altura de uma virtude republicana, tanto como o valor e a coragem, dão á esse episodio do poema o colorido de uma lenda.

Vejamos o combate.

Já n'um sublime e publico theatro

Se assenta o rei inglez com toda a côrte.

Os divertimentos da idade media conservam ainda a ferocidade dos tempos antigos. Roma, nos seus melhores dias, não tinha maior festa do que os combates do circo; a cavalleria, porém, temperou com certa doçura essas luctas, e ainda que fossem ellas o espectaculo da força, eram tambem o da dextreza e o da magnanimidade. A honra impunha aos combatentes deferencias e respeitos, que mostram certa elevação de sentimento. A descripção, que fez o poeta da peleja e da victoria, é rapida, mas brilhante.

Quanta recordação da cavalleria desperta a pintura de Camões!

<< Mastigam os cavallos, escumando,

Os aureos freios com feroz semblante; >>

não nos apparecem n'esses versos os antigos cavallos dos paladinos, unidos á elles na recordação da historia, companheiros de suas longas jornadas e

de suas aventuras, e tratados sempre com aquelle respeito

«Che a buon cavallo dee buon cavallero, >>

como diz Ariosto ?

Eram, porém, onze portuguezes que estavam para combater contra os doze pares de Inglaterra. Quem faltava ao combate? Magriço. Quando seus companheiros partiram, disse-lhes elle que queria ver o mundo, e em vez de seguir por mar atravessou a Hespanha e a França.

A estancia em que Magriço falla aos outros cavalleiros é digna do poeta. Vêem-se n'ella dois sentimentos cada qual mais elevado : o primeiro é a confiança sem limite no valor dos outros paladinos, o segundo uma fé tambem inabalavel na propria estrella. Era grande o perigo para sua honra; um dia de demora fal-o-hia faltar ao combate! entretanto partio elle sem hesitar, certo de que, se não chegasse no dia, os onze portuguezes venceriam os doze pares:

« Todos por mim fareis o que é devido, »>

mas certo, ainda mais, de que nada impedi-lo-hia de tomar parte no desafio:

<< Rios, montes, fortuna, ou sua inveja,
Não farão que eu com vosco lá não seja. »

Vê-se em tudo isso o genio do poeta. Magriço, o protogonista, desapparece da scena, sem que, desajudados de seu valor, os outros duvidem um momento da victoria. Não esperam elles

« Que as damas vencedoras se conheçam,
Posto que dois ou tres dos seus falleçam ? >>

Faltava um homem, mas o espirito da patria estava com os outros.

Não é, porem, só para mostrar o esforço individual de cada um dos portuguezes que Camões demora a apparição de Magriço; é tambem para dar a côr dramatica ao torneio. Quantas vezes nas lendas da cavalleria o heroe apparece no momento em que menos é esperado e decide da victoria ?

Tudo vai se consummar sem elles; o crime, o supplicio, o cembate vai ter lugar, quando na arena desponta vindo não se sabe de onde um cavalleiro mysterioso; se é a honra, a fama, a belleza de uma dama que está empenhada —no juizo de Deusvê-se um d'esses guerreiros tomar as côres da dama offendida, entrar na liça, arriscar a vida, e partir depois da victoria coberto ainda de poeira para em outro lugar defender a innocencia e a fraqueza. Walter Scott pinta-nos por vezes a apparição de um desses heróes, sob cuja armadura descobrimos logo um libertador, um Ivanhoe, na raia da arena no momento em que a vida de uma mulher estava abandonada e sem esperança.

Estão os onze portuguezes em frente ao doze de Inglaterra; vai principiar o combate,

<< quando a gente

Começa á alvoroçar-se garalmente. »

Era Magriço que apparecia; seu aspecto é o de um heróe. Entrando na arena depois de uma longa viagem saúda o rei e as damas e toma lugar no meio dos seus,

« A' quem não falta certo nos perigos. >>

A dama, da qual era elle o campeão, e que se

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