sobre o desenvolvimento do espirito humano erão nenhuns. Elle podia então, como hoje, definir os dogmas e as tradições, mas não podia impedir curso da sciencia. A razão devia ter dezeseis seculos depois de Christo ao menos a liberdade com que outr'ora florescera em Athenas, Roma e Alexandria. A Reforma, da qual Augsburgo foi a solemne iniciação, apparece na historia, posta de lado a questão religiosa de que esta não se preoccupa, como um grande passo da humanidade, um passo decisivo. Deficiente, contradictoria, anarchica, e até inconsciente como systema religioso, ella produziu sem o saber o resultado de romper a pesada atmosphera, que asphyxiava a intelligencia dos povos. Depois d'ella a razão expandiu-se livremente, e o espirito humano, na inteira posse de si mesmo, seguiu o seu destino, em um progresso de liberdade incessantǝ. O que, porém, dá ao seculo XVI um caracter especial, é a longa lucta que a iniciativa do monge allemão teve de sustentar com a Europa. Limitado no principio ás fronteiras de um pequeno estado, augmentando depois com a affluencia de todos os espiritos que careciam de desenvolver-se, o movimento reformador poude afinal sahir victorioso da lucta, porque para elle a victoria consistia em ganhar o direito de viver. A energia, que de parte á parte foi necessaria, de uma para conter a revolução geral do espirito humano, de outra para vencer os exercitos das grandes potencias com a força tão sómente de uma idéa, dá a historia d'essa época o movimento e o interesse de um drama. Foi ainda nos principios da contenda, quando o partido da insurreição (1) não podia sahir á campo, que o poeta portuguez viu a luz do dia. Outros acontecimentos porém deviam cercar o seu berço, e para que bem se avalie em que scenario e entre que factos começou elle a vida, vamos pintar o estado da Europa e o de Portugal no primeiro quartel do seculo XVI. Raras vezes tantos e tão diversos acontecimentos succederam-se com a mesma rapidez em um tão curto periodo. São vinte e cinco annos como outros não ha talvez na historia, se exceptuarmos os que correm de 1789 á 1815. E' realmente uma era de energia, de grandes commettimentos, de actividade e de trabalho, que se parece de alguma sorte com os periodos de formação; é a genesis do principio de liberdade. Para começarmos pelo poder, que era a fonte de toda a autoridade espiritual, e que, apezar de enfraquecido como potencia secular, tinha ainda a dictadura das almas, o Papado vê successivamente tres pontifices occuparem a thiara. Seus nomes dizem tudo: Alexandre VI, Julio II, Leão X. O reinado de Alexandre VI é o governode Cezar Borgia: o dominio do incesto, do punhal e do veneno. Lucrecia liga o nome ás tradições do pontificado, emquanto seu pai envenena-se com o vinho que destinára á um amigo. (1) Guizot disse: A Reforma foi uma insurreição do espirito hnmano contra o poder absoluto na ordem espiritual. Julio II é de outra tempera; é élle um velho de setenta annos, mas de alma joven e de coração ardente; com sua idade, ainda é o primeiro a entrar pela brecha em uma praça sitiada, imitando a intrepidez dos vinte e dois annos de Gaston de Foix. Ao passo que manda levantar a basilica de S. Pedro por Bramante, toma elle a espada para expellir os francezes da Italia. Julio II é uma figura ainda indecifravel, mas quão longe está esse papa artista, italiano e soldado de um Borgia! Leão X, um Medicis, é seu herdeiro. Leão X é o reinado da arte. O papado esquecia as velhas disputas escholasticas para lançar-se á antiguidade paga. Roma tornou-se uma outra Florença. Era no reinado d'esse papa que devia rebentar a reforma de Luthero; em 1820 queima elle a bulla qne o excommunga. Antes, porém, que as guerras religiosas tenham lugar, a scena da Europa é occupada com a rivalidade de Carlos V e de Francisco I. Essa lucta longa, travada em diversos theatros, complicada sempre de novos accidentes, é a primeira guerra de supremacia que vê a Europa moderna; no anno, porém, do nascimento do poeta, a victoria da casa d'Austria estava imminente. Era a vespera da batalha de Pavia. No começo do seculo o espirito emprehendedor da navegação fôra descobrindo o mundo. Cabral tinha dado o Brazil á seu paiz, Magalhães tinha feito a primeira viagem á roda da terra, e Vespucio ligado o nome á America, emquanto um anno antes Colombo voltava á Hespanha carregado de ferros. A maior actividade reina em todos os paizes. A conquista do Mexico exige um Cortez; as artes chegão ao seu apogeu, e em toda a parte a monarchia é temperada por um novo ideal, ao passo que se torna absoluta por direito. E' a formação da Europa moderna. A inquisição queima ainda em nome de Christo, mas nos paizes cultos a inquisição não penetra; para esses vão apparecer os jesuitas. E' o prefacio das grandes luctas religiosas. Dentro de pouco a França será o theatro da mais sangrenta guerra civil; os estados protestantes far-se-hão acceitar pela guerra dos trinta annos; e uma nova sociedade formar-se-ha na Europa, sobre as ruinas da idade media, da inquisição, da theocracia. Para essa será a revolução ingleza de 1688 e a franceza de 1789: então acabará o feudalismo. Difficil por certo é dizer qual o caracter, que tem todos esses tão diversos acontecimentos; o' que dizemos, porém, é que elles denunciam em toda a parte a energia do despertar, e que a mostram em todos os paizes, nos paizes do norte, que se organisam como a Russia, que se refazem como a Polonia, que se libertam como a Suecia, que chegam á ter conhecimento de sua força, como a Inglaterra, e nos paizes centraes e meridionaes da Europa O descobrimento de novos mundos, o renascimento da antiga civilisação, abriram ao pensamento horisontes mais largos. Para voar a elles era preciso ter as azas soltas, e a cadeia religiosa era muito pesada; ella não prendia só a fé,prendia a razão e mesmo o sentimento, a sciencia e a arte. O caracter pois d'esses primeiros vinte e cinco annos é uma actividade, que se atirava á todos os commettimentos, que percorria todos os mares, que sentia necessidade de expandir-se e de executar. O que elles, porém, produziram, como grande resultado de toda essa energia de coração, foi a liberdade do pensamento. Tal era o estado da Europa. Em Portugal reinava por esse tempo D. João III. Havia tres annos que elle era rei. O reinado de D. João III é a transição da gloria para o captiveiro. Fraco, preoccupado de interesses espirituaes, obedecendo á Castella, elle não guardou a herança de D. Manoel, e quando morreu passou a seu neto um paiz embrutecido pelo fanatismo e gasto pela indolencia. No entanto era bem grande essa monarchia portugueza quando elle subio ao throno. As praças de Africa estavam intactas: Gué, Cafim, Azamor, Mazagão, Ceuta, Alcacer, Tanger e Arzila viam tremular a bandeira de D. Affonso V, O Brazil pertencia á corôa, e no seu solo fertil e encantado podia levantar-se um imperio. Cabo Verde, os reinos de Congo, as ilhas, que a coragem dos descobridores e a intuição do infante D. Henrique tinha enfeudado á monarchia, eram na costa occidental da Africa possessões portuguezas, emquanto na oriental o eram tambem Sofala e Moçambique. A India, onde ainda soava a fama do grande Albuquerque, recebia como governador Vasco da Gama. Malaca, Ormuz, Gôa, Čalecut, e tantas outras praças, espalhadas da Persia ao mar da Sonda, attestavam que Portugal no começo do decimo sexto seculo tomava posse das terras que descobrira. Compare-se com todos esses paizes, de uma area indefinida então, o pequeno reino europeu, encravado ná grande monarchia de Carlos V. Era Portugal, na expressão do |