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e querendo ainda vibrar com a mão desfallecida o alfange de Ourrochusa. Figura imponente na lividez da morte, e da qual se podia dizer com Tasso:

« La vita nó, ma la virtu sostenta

Quel cadavero indomito!»

O valor e não a vida, sustenta aquelle cadaver indomito. "Era mais um phantasma que um general; era só a alma da patria que ainda respirava n'esse corpo examine. Quando tentou elle um derradeiro esforço, a vida deixou-o. O que se passou n'esse ultimo momento? Cahiu elle atravessado por uma bala inimiga e deu-lhe ainda Deus a felicidade de morrer em combate e não envenenado pelos seus ? N'esse ultimo olhar que lançou sobre o campo da peleja, adevinhou elle a victoria ou duvidou d'ella e julgou morrer com a patria? Ninguem nos conta qual fosse o ultimo pensamento d'aquella grande alma; duvida pungente para o espirito de todos nós que quizeramos que ao desprender-se para Deus levasse ella a pura alegria de ver a patria triumphante. Essa agonia heroica de sete dias merecia como recompensa no ultimo momento a intuição da victoria.

Abd-el-Melek é uma figura dramatica. Se Alcacer fosse um desastre para os Arabes e trouxesse-lhes a escravidão, a memoria do martyr seria para elles uma legenda; então poderiam, sem outra illusão mais do que a do crente que tem fé na justiça, esperar a resurreição d'aquelle que foi a alma de seu paiz. D. Sebastião, renascido ou tornado da Africa, seria a reapparição no throno do fanatismo, da loucura e do direito de conquista; Abd-elMelek levantado do chão de Alcacer, se ahi fosse enterrada a raça arabe do occidente, seria a resur

reição de um povo. As nações podem acreditar na volta de certos homens, que foram a personificação de um sentimento ou de uma idéa universal; a Judéa podia esperar Elias e David, a Hungria Scanderberg, a Polonia Sobieski ou Kosciuko: o homem é nada, o principio é tudo; o nome é apenas a forma legendaria da esperança !

Não era nem d'esse rei nem d'essa expedição que Camões devia ser o cantor. Para cantar a expedição, que o rei decretou dever ser uma epopéa no dia em que nomeou um poeta para acompanhal-a, foi bem escolhido Diogo Bernardes; melhor seria, porém, o seu contemporaneo Miguel de Cervantes. Não era o que se ia passar em Africa digno do genio de Camões. Aquelle que havia cantado os tempos heroicos de Portugal, não podia incensar a geração de D. Sebastião ou do cardeal-rei. Uma batalha ganha em Africa não pezaria na sorte do mundo e seria talvez para a nação portugueza uma calamidade maior que um immediato desastre. A raça arabe unir-se-hia toda para exterminar os invasores, debilitados no seu proprio paiz, e com vastissimas fronteiras á proteger nas quatro partes do mundo.

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Se, porém, os mouros succumbissem em Alcacer, e fosse elle o tumulo dos musulmanos de Marrocos, a legenda d'essa batalha não seria do algoz, mas da victima. A legenda da Polonia não pertence a Russia; onde se a ouve em toda a sua poesia é nos carceres de Varsovia e nos gelos da Siberia. Um poeta tartaro não poderia ser o cantor de uma tal conquista; seu poema seria a profanação de um sepulchro. Não estava reservada essa triste honra ao cantor dos Lusiadas.

Diz-se que o poeta logo que o rei partiu para a Africa, começou a escrever um poema allusivo; um seu amigo Bernardo Rodrigues chegou a ler esse trabalho. Logo que soube, porem, da sorte da expedição, queimou Camões o que havia escripto, e a posteridade ficou sem ver essa obra, na opinião de Rodrigues, superior aos Lusiadas.,, Com quanto pezar temos á lamentar, e por tantos motivos, que o poeta não tivesse occasião de celebrar esta expedição militar!" exclama um de seus biographos. (1)

O genio tem uma missão certa, só as grandes idéas o fecundam e n'essa campanha de Marrocos nenhuma grande idéa se via inscripta na bandeira de Portugal. Não era pois essa a acção que devia inspirar á Camões um poema maior que os Lusiadas. Na idade á que elle tinha chegado, e no estado de espirito em que se achava, não poderia de certo compor um novo poema; se o compuzesse, porem, uma cousa havia de faltar-lhe. Seria essa a inspiração. Poderia elle descrever com seu grande talento de pintor a natureza, o céo, a vegetação, as areias, os costumes, e o povo da Africa: a acção, porem, seria monotona e esteril como o deserto, em que ella se ia desenvolver.

Não se compõem em uma vida dois poemas como os Lusiadas; para a gloria de Camões, não tiveram, porem, elles esse irmão, fructo tardio da velhice e da miseria. Ao lado do grande poema de Portugal, o de Alcacer seria o signal da decadencia do poeta; quem os comparasse perguntaria

(1) O Sr. Juromenha.

como o genio pode produzir tão diversas creações, e como pode faltar-lhe instincto bastante para salvar a sua gloria aos olhos da posteridade. Esses dois poemas seriam a imagem das duas epochas da vida de Camões: um pareceria filho do ideal, da mocidade e do amor, o outro seria pallido e frio, como se a morte houvesse n'elle collaborado. Mas não estava reservada ao poeta

a

triste sorte de mutilar sua propria fama. Se a expedição terminasse por uma victoria, mesmo assim a morte viria interromper o doloroso trabalho, á que o poeta ia sujeitar a imaginação, para d'ella tirar ainda algumas scentelhas. A batalha de 4 de Agosto, porém, foi um desastre, e teve elle de entregar ás chammas as paginas escriptas de seu poema.

Para uma alma, como a de Camões, nenhuma expiação poderia ser mais cruel do que essa; talvez pensasse elle então em lançar ao fogo, mas ellas corriam já o mundo, as oitavas dos Lusiadas, em que a expedição á Africa fôra descripta, como um grande commettimento do patriotismo e da fé. A dor de Camões n'esse momento devia ter sido intensa. Os contemporaneos dizem que elle ficara como assombrado depois de ter queimado o seu livro. E' que no coração do poeta passou-se uma scena das mais longas e das mais pungentes; para elle que amava a patria com uma dedicação sem limites, a idéa de ter concorrido para seu infortunio e talvez para seu captiveiro era um remorso, uma aflicção immensa ; isso juntava-se aos soffrimentos pessoaes, e a vida lhe parecia um mal de que a gloria não attenuava o excessivo rigor.

Ao queimar o poema, viu elle mais claramente que essas cinzas foram o seu sonho, e que esse sonho havia sido a morte do paiz. Na explosão da dor o poeta não pensou em justificar o seu erro, antes exaggerou a influencia de seus versos no animo do joven rei. Talvez, se a scena que Garrett nos pinta no seu Camões foi real, lembrasse-se elle da figura de D. Sebastião, expansiva e radiante, ao ouvir em Cintra tão bem pintada em magnificas estancias a aspiração, que foi a de toda sua vida. O jubilo do rei ao ver tão bem comprehendida por um grande genio a politica de seu reinado, seu sorriso á cada uma dessas lisonjas que elle tomava sinceramente por homenagem, seu enthusiasmo por essa gloria que lhe apparecia tão pura e tão brilhante logo nas primeiras oitavas do poema, todas as recordações da entrevista em Cintra com D. Sebastião, deviam ter vindo á memoria do poeta como queixas amargas da patria. Pois essa que elle amou com toda a força de seus sentimentos, que collocou no lugar de seu coração onde tinha vivido Catharina, haveria de accusal-o do seu tumulo-como o propheta oraculo de sua desgraça? Essa idéa foi para Camões fonte de novos e extraordinarios soffrimentos; e, (pode-se conjecturar,) apressou sua morte. A' historia cabe, porem, absolver o poeta de qualquer complicidade n'esse desastre de Africa. Elle foi apenas um cantor e um soldado. Na immensidade de seu amor, só podia dizer á Portugal, como dissera ao rei:

<< Braço pera servir-te ás armas feito,
Mente pera cantar-te ás musas dada. »

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