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Dois ou tres fragmentos de cartas suas fallam do estado lastimoso, en que viveu nos ultimos annes. Quem ouviu dizer que em tão pequeno theatro, como o de um pobre leito, quizesse a fortuna representar tão grandes desventuras! " eis uma de suas phrases, e essa é a expressão de uma grande dor. Foi na verdade uma lenta agonia a d'esse homem, pregado á um leito de miseria, e vivendo na solidão de sua alma, com o pensamento fixo nos tumulos dos seres, que elle havia amado porque o infeliz sobreviveu á todos.

O seu desprezo da vida transparece do ultimo de seus sonetos; pode-se dizer d'este que foi antes soluçado, que escripto :

« O dia em que eu nasci morra e pereça,
« Não o queira jamais o tempo dar,
« Não torne mais o mundo, e se tornar,
<< Eclyse, nesse passo, o sol padeça.

« A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
« Mostre o mundo signaes de acabar,
<< Naçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
« A' mãi ao proprio filho não conheça.

« As pessoas pasmadas de ignorantes,
« As lagrimas no rosto, a cor perdida,
<< Cuidem que o mundo ja se destruio.

«Oh! gente temerosa, não te espantes,
« Que este dia deitou ao mundo a vida
< Mais desgraçada que jamais se vio. »

Ouçamos a linguagem de Job:

<< Pereça o dia em que eu nasci,

« E a noite que disse: um homem foi concebido.

« Mude-se esse dia em trevas;
<< Não o allumie Deus do alto,

« Não brilhe a luz sobre elle !

<< Revendiquem-no as trevas e a sombra,
<< Cubra-o uma noite pesada,

<<< Um eclypse encha-o de espanto!

<< Seja essa noite presa de um sombrio horror,
« Não conte ella no calculo do anno,

« Não entre ella no computo dos mezes!

<< Seja essa noite esteril,

<< Não se ouçam durante ella gritos de alegria!

<< Escureçam-se as estrellas de sua manhã ;
« Espere elle a luz, sem que a luz venha,
<< Não veja ella as palpebras da aurora;

<< Pois que ella não fechou o ventre que gerou-me,
« E não me livrou assim da dor.

<< Porque não morri no seio de minha mãi,

« E não expirei ao sahir de suas entranhas.» (1)

Não se vê no soneto de Camões o abandono de espirito do homem que se sente só na terra ? E' a mesma linguagem de Job, o mesmo cantico de dôr, o mesmo appello ao aniquilamento e ao descanso !

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Não ter nascido "eis um dos ultimos desejos de um homem como Camões; e elle nos diz tudo. Não ter nascido, isto é, não ter passado do nada á vida, não ter nunca pensado nem sentido, não ter tido uma patria, não ter provado da gloria, eis o voto que fazia Camões em seus ultimos momen. tos! A fé succumbia luctando com a desgraça, mas era para renascer, porque logo vamos vel-o agradecendo á Deus sua ultima felicidade-a de não sobreviver á patria!

(1) Livro de Job-traducção de Ernesto Renan.

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Quem pode dizer-se mal pago dos homens, ou chamar-se infeliz, recordando-se de Luiz de Camões?" exclama o Morgado de Matteus.

Chegando ao fim da vida de Camões, comparemol-a com a de dois outros grandes poetas. Da comparação ver-se-ha que nenhuma vida foi mais cheia de amarguras, nem mais digna de estima do que a do cantor dos Lusiadas.

Vemos logo, ao lado d'elle e seu contemporaneo, Torquato Tasso. A vida de Tasso foi na verdade cheia de dôres, mas o poeta italiano não tinha a energia, a altivez, a dignidade do nosso. O carcere do hospital de Sant'Anna, onde elle esteve tanto tempo prisioneiro, quebrou-lhe esse caracter violento e indomito, que sempre ostentára antes; por todas as pequenas côrtes da Italia passeava elle, mendigando, e pondo a lyra, que era a mais popular de seu tempo, á disposição dos que podiam pagar o seu fausto e seus caprichos; estar ligado a um principe, que lhe deixasse viver como um sybarita á troco de alguns versos, era seu sonho; por isso não houve erro, que elle não sanccionasse com sua musa, sobretudo os erros do fanatismo. O que, porém, tira á prisão de Tasso a poesia que a legenda lhe tem dado, é sua loucura; no estado de espirito á que chegou nos ultimos dias, vendo inimigos em todos que o cercavam, o poeta deu um dos mais tristes espectaculos, o de desconhecer-se a si e suas obras “ na energica expressão de Montaigne, que o visitou

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no carcere.

Esse grande poeta que punha um preço á dedicatoria da, Jerusalem ", como é differente de Camões offerecendo os Lusiadas á um rei de

quem nada esperava e á quem nada pedia senão que illustrasse o seu paiz por novas victorias!

Esse grande poeta que sahia da prisão para mendigar riquezas dos soberanos da Italia, que fugia á noite das côrtes onde era adorado para negociar com sua celebridade, como é diverso do nosso, jazendo com toda sua gloria em um leito de dôr, e occultando seus soffrimentos!

Tasso foi muito infeliz, tão infeliz talvez como Camões, mas sua sorte não nos impõe o mesmo respeito.

Esse poeta que conheceu toda a embriaguez da gloria, desde um nome popular mesmo entre os bandidos da Calabria até uma coroação no Capitolio, conheceu tambem o fel de todos os infortunios. Sem coragem, porém, para resistir ao soffrimento, deixou-se vencer por elle; uma incuravel misanthropia nasceu em sua alma; todos lhe pareceram inimigos, cada dia julgava-se condemnado ao inferno, e ao mesmo tempo que assim odiaта os homens, mendigava publicamente para viver no meio de todos os prazeres. A impressão que a vida de Torquato Tasso deixa em quem a estuda é de um profundo pezar. Todos, ao lermos sua correspondencia e ao sorprehendermos o mysterio tanto tempo impenetravel de sua vida, não podemos senão lamental-o.

Porque não teve elle animo bastante para aceitar as condições difficeis da fortuna, e não comprometter sua gloria nem deshonrar seu martyrio?

Ninguem póde lembrar-se sem dôr da vida do poeta, mas sua desgraça não inspira senão compaixão, em quanto a de Camões soffrida com tanta coragem, escondida com tanto pudor, deixa-nos

todos cheios de admiração pela alma que a dominou sempre.

Tasso expirou no meio dos preparativos de uma coroação nacional no Capitolio, Camões expirou ouvindo os ais da agonia de seu paiz.

Se é verdadeira a tradição e se Tasso amou Eleonora d'Este, Camões teve tambem um amor infeliz, e em vez de o prenderem com promessas magnificas á cidade em que residia sua amante, afastaram-n'o d'ella pelo exilio, em quanto que Tasso era o mais bello ornamento da côrte de Ferrara. Se algumas vezes Tasso conheceu a pobreza, não conheceu a miseria; se faltou-lhe dinheiro depois de suas prodigalidades ou em seus caprichos, não recebeu o pão da caridade de um escravo; se mendigava, não era a esmola de um transeunte, eram riquezas; não escondia o rosto nem calava o nome, humilhava antes sua gloria, fazendo d'ella objecto de contractos. A desgraça que ferio Camões achou-o sereno, na consciencia de seu genio; a desgraça que ferio Tasso, foi a desordem de sua vida; seu espirito perturbou-se, elle começou por desconhecer-se a si mesmo, por julgar-se victima de uma conspiração geral; dentro de pouco era na Italia uma só legenda-o genio e o infortunio do poeta. A vida dos dois poetas, semelhante nos seus soffrimentos, não o é na maneira porque ambos os supportaram: um sem calma e sem coragem, sacrificou á desgraça seu genio, sua altivez e sua honra; outro, encobrindo a miseria, não lhe deu outros direitos senão os que a fome, o desamparo e o abandono teem sobre a vida.

Deixemos, porém, sem accusal-o o desgraçado

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