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annalista desse reinado, de Fr. Luiz de Souza, „ um ponto indivisivel comparado com tamanha circumferencia." (1)

Quem póde bem collocar-se no meio das coisas e dos homens de um outro tempo, avalia de que perseverança e de que genio não precisava o rei de uma semelhante monarchia, para guardar a unidade d'ella. Era-lhe preciso um espirito de conciliação, de concordia e de tolerancia superior ao de seu paiz, para em toda a parte operar a fusão das raças novas e da raça dominante. No Brazil, por exemplo, que fineza de politica não era necessaria para realisar a sujeição das hordas innumeras que o habitavam, para doutrinal-as, fundar com esses elementos naturaes o dominio portuguez! Em vez, porém, desse espirito organisador e conservador, o rei tinha o opposto. Não devia elle ligar, devia desunir; mesmo no seio de seu pequeno paiz natalia introduzir a mais funesta das divisões e traçar com as fogueiras do auto da fé as fronteiras das crenças.

Emquanto deixava na India converter-se a obra da assimilação colonial em outra de lucros pessoaes, e apparecer a primeira fórma do trafico dos escravos; emquanto não fazia por sustentar as praças de Africa e deixava-as entregues ao heroismo dos soldados que nellas havia desterrados; D. João III inaugurava, por assim dizer, seu reinado, franqueando á inquisição o solo e as almas portu

(1) Annaes de D. João III, publicados por A. Herculano, p. 30.

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guezas. Era, como se vê, o movimento contrario áquelle que agitava o norte da Europa. Se na Allemanha, na França, em todos os paizes septentrionaes, precisava-se de liberdade, em Portugal e na Hespanha o Santo Officio prendia pelo medo do fogo as consciencias já presas pelo medo do inferno. Na pequena familia lusitana nascia, pois, um novo schisma, e o espirito de intolerancia que devia exterminar as populações indigenas do Brazil, escravisar os negros da Africa, e explorar a ferro e fogo as riquezas do Indostão.

Nasceu o poeta no começo desse infeliz reinado, muito inferior á missão que lhe coube, e que devia provocar, em um seculo heroico como o seculo XVI, uma reacção que seria a morte do paiz;-tal foi a expedição de Africa. No mesmo anno morria na India Vasco da Gama. A sorte approximava o berço do cantor do tumulo do heróe. Portugal ao declinar via nascer aquelle que daria á sua gloria um echo incessante.

Não se póde com segurança dizer em que parte de Portugal nasceu Camões. Coimbra, Alemquer, Santarem e Lisboa disputam, como outr'ora ás cidades gregas, a honra de ter dado berço ao maior poeta nacional. Ainda que os biographos modernos declarem-se por Lisboa, o caso é para ' nós duvidoso. Alemquer (1) allega que nos seus arredores ha uma quinta á qual tradição antiquissima deu o nome de Quinta de Camões; que um avô deste residio e foi alcaide da villa; que sem

(1) Visc. de Jurom, Tomo I pag. 9.

A

pre que della falla Camões, é como alguem que lá viveu e que a pinta com suas reminiscencias. Nos Lusiadas, fallando das cidades que se juntaram ao dominio de Affonso Henriques, diz o poeta:

Alemquer, por onde soa

O tom das frescas aguas entre as pedras,
Que murmurando lava.

O soneto C, mal interpretado pelos que querem ver nelle a biographia de Camões, merece todavia alguma attenção. Esse moço infeliz, victima aos vinte annos de uma enfermidade, que o roubou á vida, no alto mar, devia ter sido um companheiro de infancia do poeta. Ao descrever-lhe a patria, o poeta falla de Alemquer como alguem que se lembra com saudade de seus sitios poeticos e de sua rica vegetação.

<< Criou-me Portugal na verde e chara
<< Patria minha Alemquer; >>

Esse nome de „patria" dado a um pequeno recanto do paiz é realmente uma delicadeza de coração, que só conhecem os homens nascidos longe dacôrte. Os filhos de Lisboa não comprehenderiam que se chamasse assim uma aldeia ou villa da Estremadura. São os que nascem nesses lugares distantes, cujos costumes, habitos de linguagem e côr local são nas côrtes objectos de mofa, os que sentem necessidade de dar ao pequeno torrão onde nasceram e passaram a infancia o nome de patria.

Santarem allega que a mãi de Camões tinha lá nascido e lá vivera, e que o poeta vio a luz do dia em seu solo, no meio da familia materna; é a tra

dição recolhida por muitas gerações que dá-lhe o direito de querer ser o berço do poeta.

Coimbra allega que o pai Camões residio nella por muito tempo, dentro do qual está o anno do nascimento do poeta; allega mais que em 1607, dedicando as rimas á sua Universidade, Domingos Fernandes o affirmava.

Resta Lisboa, e esta com mais titulos talvez. Manoel Corrêa assegura que Camões nasceu em Lisboa, e Manoel Corrêa foi amigo do poeta; mas esse diz tambem que elle nasceu em 1517. A opinião de que elle foi oriundo de Lisboa, ainda que provavel, não passa de uma conjectura, e assim ficamos sem dizer onde nasceu o poeta. Poeta eminentemente nacional, quiz o acaso que, perdida a lembrança de seu nascimento, podesse o paiz reclamar a gloria de ter sido o seu berço. Pertencendo menos á Lisboa, á Santarem, á Alemquer, á Coimbra, elle pertence mais á Portugal.

Era a familia de Camões antiquissima em Hespanha, de onde se havia passado a Portugal, com Vasco Pires Camões; desse nasceu João Vaz, e deste Antão Vaz, avô do poeta. Antão Vaz, casado com Guiomar da Gama, teve Simão Vaz de Camões, pai do poeta, que desposou-se com Anna de Sá e Macedo, de Santarem.

Nenhum documento nos resta sobre a infancia de Luiz de Camões, e quasi nenhum sobre sua mocidade. Parece, porém, que frequentou as aulas da universidade de Coimbra, onde residio seu pai. Até os vinte annos de idade levou elle aformar sua intelligencia, a enchêl-a com esses thesoiros de sciencia, que deviam ornar o seu poema. Sahindo de Coimbra, veio para Lisboa. Teve

Camões um desenvolvimento muito precoce. Um soneto attribuido aos seus onze annos é uma maravilha para a idade.

A litteratura portugueza tinha atravessado por esse tempo sua idade de ouro. Em toda a parte o renascimento das lettras e das artes tinha produzido bons fructos. Portugal não havia ficado áquem do movimento.

O theatro havia-se constituido com Gil Vicente, cuja simplicidade tosca mal deixa perceber a grande influencia que teve sobre a litteratura patria.

Ao lado do theatro florescia o romance. Além desse Amadis de Gaula, que corria a Europa vertido em todas as linguas, Bernardim Ribeiro tinha já escripto a sua Menina e Moça, que mais tarde devia ver a luz. Bernardim Ribeiro é uma alma poetica e sensivel, como muitas não conta uma litteratura. Toda a vida passou-a elle a cantar, a soffrer e a amar. Sua lyra tem já em seu seculo uma doçura inimitavel, que tanto tempo depois devia ainda ser o modelo de Garrett. Alma de trovador, dir-se-hia que era um desses bardos peregrinos, cuja missão sobre a terra fôra a mesma dos passaros que vivem cantando, ou dos insectos doirados que moram nas flores. O coração dessa raça feliz, de que no seculo XIX restam poucos descendentes, não tinha outro destino senão colher a poesia de todas as coisas e fazer della o seu mel. Almas leves, poisavam acima de todas as dores nas azas da esperança, como a borboleta que se eleva sempre acima da mão que a quer prender.

Esses bardos, que cantavam o amor e Deus, e erão sagrados em toda a parte; que dormiam uma noite á sombra das cathedraes gothicas e em

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