II Já a Eneida e a Divina Comedia existiam quando Camões compoz os seus Lusiadas; mas como poema nenhum dos primeiros vale o segundo. Nos primeiros cantos de Virgilio ha certo movimentó que nos lembra a Iliada; a narração de Enéas é monumental; mas o resto do poema, exceptuadas notaveis descripções, como a do Tartaro, é diffuso e sem interesse. Turnus, rival de Enéas, enche o poema com suas luctas, e não tem importancia historica; a acção passa-se nos dominios da lenda, mas já sem o colorido nem a naturalidade da Iliada: é que Homero encontrava as lendas já creadas pela imaginação do povo, e Virgilio as tirava da sua. O leitor littterario admira, na verdade, sobretudo em Virgilio a suavidade de sentimento que o distingue, e á cada pagina da Eneida encontra um thesouro escondido. O poema epico, porém, é outra coisa; elle deve ser um todo harmonico e grandioso, não deve tanto agradar pela delicadeza e enleio da phrase como pelas concepções, pela idéa, pela acção; não deve ser admirado nas particularidades, senão depois de haver deslumbrado o povo por sua construcção, por suas grandes linhas, por sua symetria. São assim as cathe iraes gothicas: o observador não se demora no cinzelado das portas, no angulo da ogiva, nos entalhos e no mosaico, senão depois de ter contemplado o enorme vulto de pedra, e de ter seguido com os olhos as linhas agudas que sobem para o ceo e descem para a terra, como a escada de Jacob. O que fica na memoria, o que se desenha aos olhos de quem viu uma dessas construcções da arte christã — é o perfil da cathedral, tal qual se a vê de longe, em um crepusculo da tarde. O poema epico deve ter uniformidade, symetria, e igualdade, sem as quaes não ha bello, nem na poesia nem nas artes. A Eneida nunca seria o poema de Roma. A Divina Comedia não é propriamente um poema epico; é um poema phantastico, é o sonho de uma imaginação tão grande quanto melancolica. Nada ha ahi de real; são espectros que fogem e se evaporam. Dante é um dos maiores genios que o mundo produziu, mas é da natureza de Shakspeare. O poeta de Hamlet e, o que mais é, de Julio Cesar não poderia fazer a epopéa da Inglaterra; cada genio tem uma vocação, quasi sempre visivel em suas obras e limitada por ellas. Duas ou tres figuras immortaes, que o propheta italiano nos deixou, mostram o poder de concentração que tinha o seu pensamento, e como podia elle em dois ou tres traços cercar de luz uma fronte. Mas esse homem extraordinario é a Idade média; sua musa é a theologia catholica; as sombras do exilio entram por seu poema e envolvem até o seu paraizo. Um povo não póde repetir essas concepções sombrias, que nada têm com a sua historia. Mesmo um povo como a Polonia, na expressão do poeta anonymoo paiz dos tumulos e das cruzes-não comprehende essa linguagem de desespero e de amargura. Ha na Divina Comedia espalhados aqui e ali trechos admiraveis; mas o poema é sepulchral, é lugubre, e o povo quer outra coisa; elle quer a vida em vez da morte, quer a esperança em vez do desespero, a gloria e não a agonia, a realidade e não o phantasma. A Divina Comedia é a creação da idade média, com sua escolastica, sua theologia, seu mundo de espiritos, sua escuridão, sua noite. Não é esse por certo o poema dos corações ingenuos, das almas que creem, das que perdoam, das que esperam: não é o poema do povo, Os Lusíadas, porém, reunem ao sentimento suave da Eneida, e ás imponentes, allegorias de Dante, movimento, symetria e vida, e estão cheios desde o primeiro ao ultimo canto do mais ardente enthusiasmo. E' notavel que para os dois grandes poetas, Dante e Camões, a epopéa fosse o refugio de um amor infeliz; mas esse na Divina Comedia derramou-se como o fel, emquanto nos Lusiadas não alterou um momento o estro do poeta. Ha no poema italiano uma tal melancolia, que um critico o comparava á terra de Sardenha, cuja amargura sentia-se mesmo em seu mel; é a obra mais triste do espirito humano. O livro de Job é um conto em que ha sempre notas de uma dor profunda, mas que parece ser o dialogo da humanidade com Deus, e em que a virtude é afinal coroada pela felicidade. Ha livros de prophetas, como o de Jeremias, que têm a mesma tristeza e as mesmas sombras, mas são gritos de dor, arrancados pelo opprobrio da patria, lançados á margem dos rios do captiveiro, e sempre apezar delles sente-se na alma uma confiança inabalavel em Deus e no futuro. O poema de Dante, porém, não é cheio dessa dôr patriotica, que aliás elle sentio mais do que ninguem; é uma melancolia que tudo invade, que envolve tudo, que tira a luz do univerno, e deixa nos em uma sombra impenetravel, semelhante somente ao coração do poeta. Camões, infeliz tambem como Dante, contém sua dor e impede á sua desgraça de fallar; sua alma tem um novo amor, a patria; o homem esquece-se, quando canta o poeta. E' assim que um amor desgraçado, buscando refugio no trabalho da epopéa, produz tão differentes fructos. O sublime exilado de Ravenna amava a patria, com a dor e o desespero do filho de uma captiva; para fugir ao seu supplicio, buscava elle um outro mundo, e elevava-se á religião; mas a escolastica era arida, suas creações estercis, seu ambiente sem luz, e por isso o viajante, depois de ter percorrido o universo e de ter visto o ceu, voltava com a mesma tristeza e a mesma amargura com que tinha partido. Porque não escreveu elle na porta da vida as palavras que traçou sobre a do inferno: << Lasciate ogni speranza, voi ch'ntrate ? >> Ter-nos-hia explicado o seu mysterio, e resumido em uma sentença o seu poema! III Se, porém, os Lusiadas são isso que dizemos delles, mostremol-o ao leitor. A formação do poema no espirito do poeta é o que vamos ver agora; a fórma por que elle realisou sua concepção, estudal-a-hemos depois. A idéa do poema é a navegação de Vasco da Gama e o descobrimento das Indias. A idéa do poema quer dizer a acção epica, cujo desenvolvimento forma a unidade do monumento. Camões, porém, como veremos depois, queria cantar alguma coisa mais do que a expedição do Gama, queria cantar a patria. E' por isso que parece haver nos Lusiadas duas acções simultaneas; o mesmo dá-se na Iliada, e tão perfeitamente que Grote suppõe que ella consta de dois poemas, um que tinha por objecto a colera de Achilles, e outro a guerra de Troia. Nos Lusiadas, da mesma fórma, ha o poema da navegação e o da patria. Este, porém, está intercalado naquelle, e desenvolve-se, não de uma maneira epica, mas pela narração e pelas prophecias do Gama, de Adamastor e de Thetys. é A idéa dos Lusiadas póde-se, pois, dizer que a expedição do Gama, porque foi essa idéa que deu ao poeta occasião, scena e maneira de pagar sua divida á terra de seu berço; uma vez de posse de um argumento epico, pensou elle em cantar a historia toda do paiz. Se o seu heroe foi a patria, e se a expedição do Gama pareceu-lhe dever ser apenas um dos florões da gloria lusitana, não é menos verdade que foi essa expedição que forneceu a base e as linhas do monumento nacional, que o poeta levantou. A navegação será, pois, a idéa do poema, ainda que seu espirito seja a patria. Vejamos como o poeta comprehendeu o seu assumpto. Nos dois primeiros cantos dos Lusiadas assistimos á derrota das naus portuguezas. O theatro da epopéa é o oceano, nelle passa-se a acção integral dos primeiros cantos. Depois da introducção e da invocação celebre ao joven rei, o poeta transporta-nos logo ao meio |