Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

NOTA

SOBRE O LUGAR EM QUE SE EFFEITUOU A CONVERSÃO DOS SUEVOS NA GALLIZA

O doutissimo Florez, na sua España Sagrada, tom. 17.o, tratando da Santa Igreja de Orense, sustenta como indubitavel, que naquella cidade empezò (são as suas palavras) la conversion de los Suevos, e mostra ter em mui pouca conta o que os escriptores Portuguezes dizem em contrario do seu sentimento.

Não he por certo de grande importancia a averiguação deste ponto historico, nem Portugal perderia muito da gloria que verdadeiramente lhe compete na ordem civil e religiosa, aindaque o Rei dos Suevos se convertesse ao Catholicismo em Orense, ou em outra qualquer das cidades suffraganeas da metropole de Braga. Mas he digno de notar-se, que hum escriptor tão douto, e que com tão exacta e prudente critica examina as noticias antigas da historia ecclesiastica das Hespanhas, se esquecesse aqui dos seus proprios principios, e se deixasse allucinar (ao que parece) do amor da sua nação, e não sei se diga, de alguma menos affeição aos Portuguezes, que, quasi a seu pezar, respira em alguns lugares da sua excellente e estimadissima obra.

Braga não só era metropole fixa e permanente da Galliza, na ordem ecclesiastica, pelo menos desde o meio do seculo v (1), mas tambem foi capital do reino dos Suevos, e côrte dos seus Principes, em quanto existirão nas Hespanhas, como confessa o mesmo Florez (2). Nos arredores desta cidade ficarão, e existem até ao dia de hoje, alguns que parecem vestigios da residencia e habitação, que ali fizerão os Reis Suevos. Ali se acha a freguezia de Paadim, cuja denominação he abreviada, segundo o genio da lingua portugueza, de Palatim, ou Palatino, e allude sem duvida a palacio, ou caza de recreação daquelles Principes. Ali se vê o lugar e quinta de Mire, pertencente ao mosteiro Benedictino de Tibães, e que parece trazer o seu nome de Miro, vocabulo frequente nos nomes dos Reis Suevos. O mesmo mosteiro de Tibães he conhecido desde os mais antigos tempos, em documentos authenticos, pelo nome de mosteiro palatino (3), e he dedicado a S. Martinho Turonense. Ali se vê o mosteiro de Dume, também da invocação do mesmo Santo, aonde foi Abbade e Bispo o seu fundador, appellidado o apostolo dos Suevos, S. Martinho Dumiense e Bracarense, &c.

Por todos estes motivos, e á vista de taes circumstancias, parecia natural presumir que a conversão do Rei Suevo Carrarico se effeituaria na cidade da sua principal residencia; e assim o presumirão, sem duvida, os auctores Portuguezes, que seguirão este parecer.

Nós não o qualificaremos de certo e indubitavel, ain

(1) España Sagrada, tom. 4.o da 2.a edição, pag. 103.

(2) España Sagrada, tom. 9.o, edição 2.o, pag. 112, aonde diz que «los Suevos reynando em Galicia, tenian por capital y corte á la ciudad de Braga».

(3) A Infanta D. Urraca, irmãa de el-Rei D. Affonso VI, fazendo doação de varios bens á Igreja restaurada de Tuy, nomea entre elles ametade do mosteiro de Palatino, á margem do Cadavo, territorio de Braga. A Escriptura he dos idos de Janeiro, era 1109, anno de Christo 1071.

daque o julgamos mui verosimil pelos fundamentos apontados; pois não ignorâmos que ainda sendo Braga a residencia habitual dos Reis Suevos, podião elles, ou algum delles, ter residencia temporaria, ou casual em outra qualquer cidade dos seus dominios, e acontecerem ahi os factos que derão occasião á sua conversão, ou a precedêrão e acompanharão; mas tampouco approvaremos jamais a segurança, com que Florez attribue a Orense esta especie de prerogativa, em quanto não tivermos para isso melhores razões e mais solidas do que aquellas, em que elle funda a sua decisão.

Huma destas razões he que a Cathedral de Orense conserva até hoje por titular ao Santo Martinho Turonense, sendo (diz) a unica, que conhecemos com tal titulo, e a primeira, que teve o dito Santo nestes reinos.

Ponhamos de parte o dizer que a Igreja de Orense he a unica dedicada a S. Martinho Turonense, aindaque o proprio escriptor aponta na sua obra outra do mesmo titulo, que he a de Mondoñedo (4), e sabemos que a de Dume teve desde o seu principio a mesma invocação. Porém a ultima clausula do lugar de Florez, que copiámos, em que elle diz que a Igreja de Orense foi a primeira, que o dito Santo teve nestes reinos, devia ser provada com algum testemunho antigo e fidedigno; e nós temos direito de o pedir ao illustre escriptor, bem como elle, a cada passo, os pede, e com justa razão, a outros escriptores, em pontos semelhantes.

(4) A Igreja de Mondoñedo, que foi substituida à de Dume, e que até em antigos documentos se chama Dumiense, parece que teria a mesma invocação que a de Dume, isto he, de S. Martinho Turonense. Comtudo Florez, para auctorizar a sua proposição, e verificar em Orense o ser unica, diz assim no tom. 18.°: «O titular (dę Mondoñedo) S. Martinho parece que foi o Dumiense; pois aindaque o mosteiro antigo (e Cathedral) se dedicou ao Turonense, o presente tinha já patrono domestico no mesmo apostolico varão S. Martinho de Dume».

Florez, ou para explicar melhor o seu pensamento, ou acaso para melhor o envolver, acrescenta, que a Igreja de Orense tinha d'antes por titular a Mãi de Deos, cujo templo (diz) era a Cathedral primitiva; que Carrarico, querendo fundar templo em honra de S. Martinho Turonense, conservára, como devia conservar, o da Santissima Virgem, que estava proximo: e como (continua ainda) o obsequio dos Reis póde tanto, não deverão os ecclesiasticos de Orense ser ingratos a hum monarca, que engrandecia a Igreja, abraçando a Fé. De maneira que a gratidão, que os ecclesiasticos de Orense devião, e quizerão mostrar a el-Rei, por engrandecer a Igreja com a sua conversão, consistio, no sentir de Florez, em deixarem o primeiro templo, tomando por Cathedral a nova fabrica, e trocando a invocação da Mãi de Deos pela de S. Martinho Turonense!

Bem conhecia o douto e pio Florez o que nisto havia de improprio e indecente: pelo que recorre à melhoria do edificio, como para desculpar o grosseiro e indevoto proceder, que attribue aos ecclesiasticos, ou para desviar d'ahi a attenção dos leitores; e diz que a nova Igreja era, segundo a expressão de S. Gregorio Turonense, obra maravilhosa. Mas S. Gregorio não diz que essa obra maravilhosa fosse construida em Orense; nem, quando o dissesse, podia isso desculpar os ecclesiasticos de a terem escolhido para Cathedral, com preferencia á da Mãi de Deos: e nem os mesmos ecclesiasticos farião obsequio ao Rei, se o motivo da escolha era a melhoria da fabrica.

O certo porém he, que o escriptor não aponta prova, nem testemunho algum antigo, que mostre que o templo de S. Martinho em Orense fosse fundado naquelle tempo, e por el-Rei Carrarico; nem tampouco mostra quando Orense começou a ser Sé Episcopal, ou quando a sua cadeira se mudou do templo de Nossa Senhora para o de S. Martinho, &c.; e tudo isto convinha que se mostrasse

e auctorizasse com algum veridico documento, para fundamentar a opinião do escriptor (5).

Yepes, no tom. 1.o,da sua Chronica, centur. 1.3, tem por certo que Orense foi huma das Cathedraes erigidas de novo pelos Suevos. Florez refuta esta opinião por conjecturas de alguma verosemelhança, sem comtudo trazer provas demonstrativas do contrario. Nós não precisamos de tomar partido nesta discussão: basta-nos tamsómente reflectir a respeito della, que sendo duvidosa entre os proprios escriptores Castelhanos a época da erecção da Cathedral de Orense, mal se póde affirmar com tanta segurança a sua existencia anterior, ou contemporanea á conversão dos Principes Suevos (6), e ainda menos a supposta mudança feita pelos ecclesiasticos de hum para outro templo. O mesmo Florez parece ter conhecido a força desta reflexão, por quanto, em outro lugar, depois de repetir que o templo fundado pelo Rei Suevo fôra construido em Orense, adoça hum pouco mais as suas expressões, e contenta-se com dizer, que a obra maravilhosa do templo, a saude do Principe, e o empenho de hum Rei serião inductivos para ali estabelecer a Cathedral. Assim propõe aqui como conjectura, o que acima tinha affirmado com muita segurança e com algum calor.

Alem do argumento, que Florez tira do titulo da Cathedral, e que deixamos analysado e refutado, vale-se tambem de outra notavel razão, deduzida de hum mila

(5) Em Escriptura de D. Sancho II de Leão, que trata da restauração da Igreja de Orense, e he do anno 1071, se nomea a mesma Igreja com a invocação «de Nossa Senhora, e de S. Martinho in honorem S. Mariae Virginis, et S. Martini episcopi Sedis S. Mariae, et S. Martini, &c.»

(6) As novas Cathedraes, que se erigirão no tempo dos Suevos, tiverão principio entre o 1.o e o 2.° Concilio Bracarense, isto he, entre os annos 561 e 572. Consequentemente, se a de Orense foi huma dellas, não podia existir antes da conversão de Carrarico, que precedeo bastantes annos áquelles dous Concilios.

« VorigeDoorgaan »