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notheismo occidental. Comte caracterisa com o maior rigor historico esta missão retrograda: «Consistiu na tentativa do Jesuitismo para regenerar o passado, cujo officio espiritual se tornara vacante desde a sua transformação temporal. Centro necessario do systema catholico, aberta ou tacitamente, tinha suscitado todas as alterações que soffreram por toda a parte o regimen, o culto, e mesmo o dogma. Profundamente convencido d'esta connexidade, o eminente fundador do Jesuitismo esforçou-se, sob um titulo modesto, de instituir ao lado do principe romano, um verdadeiro papa, livre chefe de um novo clero, capaz de sobrepujar o protestantismo, reorganisando o catholicismo. Um tal destino torna-se irrecusavel, estudando a natureza e a marcha d'esta instituição, não sómente no seu inicio, mas tambem durante toda a sua primeira geração, bastante confundida actualmente com o resto da sua carreira. O nobre enthuziasta que a fundou, annunciando-se simultaneamente o defensor do catholicismo e o adorador da Virgem, merece ser erigido sociologicamente como digno continuador da reforma do seculo XIII, cujo abortamento quiz reparar. Vivamente indignado da degradação que o poder espiritual soffria por toda a parte, sob diversas fórmas, desde o fim da Edade média, elle tentou sustar a dissolução religiosa, reconstruindo o catholicismo segundo a deusa occidental. Attribuindo a impotencia da reforma franciscana a que os seus esforços tinham sido muito dispersos e muito subalternos, elle instituiu a sua ordem com o fim de reunir a prédica á confissão, e desprendeu-a do chefe nominal da Egreja para melhor a subordinar ao chefe real. Elle esforçou-se para lhe ser transferido por toda a parte o verdadeiro sacerdocio, apoderando-se da direcção geral de uma educação adaptada aos desejos da época, e a superintendencia das missões exteriores, que a universal expansão do Occidente parecia então motivar.» 1 Depois de ter claramente caracterisado esta missão historica da Companhia de Jesus, Comte, explicando a sua impotencia diante da corrente da reforma do seculo XVI, conclue: «deve-se reconhecer que a instituição jesuitica emanou de uma necessidade sincera e profunda de restabelecer dignamente a auctoridade espiritual, tornando-a propria a preencher, melhor do que na Edade média, o seu destino social. A energia das doutrinas iniciaes contra a usurpação temporal bastaria para constatar a tendencia sociocratica d'esta grande tentativa.»

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A necessidade de uma reforma da Egreja ou do Catholicismo era

1 Système de Politique positive, t. II, p. 553.

A CRISE RELIGIOSA E POLITICA

geralmente reconhecida dentro da propria religião, e aconselhada pelos reis da Europa; os papas é que empregavam todos os meios de se subtraírem a esta necessidade, temendo levar á pratica os principios estabelecidos pelos Concilios de Constança e de Basilêa, que eram radicalmente democraticos. A voz unanime pedindo um Concilio repetia-se por toda a parte; e a arte de evitar o Concilio tornou-se uma das habilidades politicas da curia romana, e uma bandeira de guerra nas rivalidades entre Carlos v e Francisco I. A demora aggravava a situação, sobretudo desde que o papa tinha de fluctuar entre a politica de Carlos V, que auctorisava o saque de Roma pelo Condestavel de Bourbon, ou a politica de Francisco 1, que fazia tratados de alliança com a Turquia, ou ainda diante das exigencias indignas de Henrique VIII, que sorria amigavelmente para Francisco I, favorecendo os imperiaes. Tudo se accumulava para as tremendas perturbações que tornaram o fim do seculo uma catastrophe. Em uma carta de D. Miguel da Silva, ministro em Roma, a D. Manuel, de 28 de agosto de 1520, communica-lhe: «Contra aquelle frade de alemanha martym Luther, que lá faz tantas revoltas, fez aguora o papa huuma bulla, de que se elle muyto ry, segundo dizem: he esta huuma cousa que tyra o somno, porque todo aquelle povo pede concilio e reformação.» 1 O ministro portuguez, cuja alta capacidade foi avaliada mais tarde por Paulo III, via claro o problema do seculo, e que lhe absorveu toda a sua elaboração politica. São notaveis as tentativas para realisar pacificamente a reforma dentro da Egreja; os mais sinceros esforços não faziam mais do que repetir o que se praticara na crise religiosa do seculo XIII, fundando novas associações monachaes, com uma indole ascetica como as ordens franciscanas e dominicanas. E o proprio Loyola, hallucinado pelo culto da Virgem, velando as armas ante o seu altar, ao entrar na loucura systematisada revelava que toda a preoccupação de uma reforma religiosa regressava a esse ideal que inspirara S. Bernardo e os grandes mysticos da primeira renascença.

A sociedade humana, esta que constitue a Civilisação occidental, tinha mudado as suas condições de existencia; as grandes descobertas maritimas davam á vida uma actividade material, com interesses terrenos, com relações mais vastas, com uma maior sociabilidade para a cooperação industrial. Uma religião de isolamento ascetico, de clausura sombria e penitente, em que cada individuo se concentrava em

1 Corpo diplomatico portuguez, t. 11, p. 33.

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si, cuidando da propria salvação, e abandonando o mundo como um cahos de desolação moral, para aspirar á patria celeste, uma tal religião não competia já á Europa do seculo XVI, em que as novas nacionalidades, pelo renascimento da jurisprudencia romana, eram animadas por um novo espirito civil. O Catholicismo, que se separara um pouco do ascetismo christão, tinha-se transformado, tornando-se uma disciplina civil; não fizeram isto os franciscanos, nem os dominicanos, e por isso foram impotentes contra a dissolução catholico-feudal do seculo XIII. Todos os que no seculo XVI seguiram o mesmo caminho, como Theatinos, Somascos, Monte-Corona, Barnabitas, e outras associações que pendiam para o destino ascetico, ficaram sem acção na corrente das transformações sociaes. Na instituição da Companhia de Jesus presidiu o pensamento inicial de libertar inteiramente os seus membros das praticas asceticas, dividindo as suas funcções no intuito de uma acção civil: as missões nas regiões novamente descobertas pelos estados; o ensino para influir na mocidade; a confissão para actuar nas côrtes e junto dos poderosos. Mesmo uma parte dos seus membros era espalhada entre a classe civil, exercendo as suas funcções seculares, mas subordinada a um plano como Coadjutores temporaes. Foi mais este espirito civil, do que a tão preconisada obediencia, que fez com que a nova ordem da Companhia de Jesus não caísse na impotencia de todas as suas outras contemporaneas. O Jesuitismo era logicamente uma nova phase com que o Catholicismo entrava na marcha historica da Europa; a mesma alteração, embora menos profunda, se operara no Christianismo quando teve de modificar as suas maximas sobre a perfeição absoluta, para tornar-se compativel com as condições da sociedade civil do imperio. Assim o elemento ascetico confinou-se nas communidades monachaes, e a religião do estado ficou entregue á disciplina de um clero secular. Renan, no seu bello livro Marco Aurelio e o fim do mundo antigo, nota esta modificação fundamental: «Onde se poderia realisar essa perfeição? O mundo, tal qual é, exclue-a absolutamente; aquelle que na sociedade praticasse o Evangelho á letra faria o papel de lôrpa ou de idiota. Fica o mosteiro; a logica retomava os seus direitos. A moral christã, moral de pequena Egreja e de pessoas retiradas do mundo, creava para si um meio que lhe era necessario. O Evangelho devia ir parar no convento; uma christandade, tendo os seus organismos completos, não pode passar sem conventos, isto é, sitios em que a vida evangelica, impossivel fóra d'ali, possa ser praticada. O convento é a Egreja perfeita; o monge o verdadeiro christão. Assim, as obras mais efficazes do christianismo não são executa

das senão pelas ordens monasticas. Estas ordens, longe de serem uma lépra que viera atacar na sua parte externa a obra de Jesus, eram as consequencias internas, inevitaveis, da obra de Jesus.» Essa preoccupação exclusiva da perfeição evangelica levou os monges á imbecilidade e á patente inferioridade diante da sociedade civil. Foi essa a causa da sua inefficacia na reforma do seculo XIII, e o que inutilisou os esforços das ordens nascentes no segundo quartel do seculo xvi. Ignacio de Loyola, começando a sua propaganda religiosa pelas penitencias e pela exaltação do proselytismo mystico, seguido pelos fanaticos Ensayalados e pelas mulheres de má vida, que formavam em volta d'elle a confraria das Inigas, por certo que não tinha encontrado o caminho para fortificar o poder espiritual, que se dissolvia na crise intensa da Reforma. No grande drama do seculo XVI elle obedeceu á marcha dos acontecimentos, que se synthetisou no seu nome por um systema de retrocesso, como sob o nome de Luthero se representou a livre critica religiosa. Diz Philarète Chasles: «Um mendigo e um monge são os dois actores d'este grande drama. Em volta de Loyola se agrupam a Liga catholica, a revocação do Edito de Nantes, a preponderancia de Hespanha. Em torno de Luthero, a influencia do Protestantismo, o desenvolvimento dos estudos biblicos, o progresso da critica moderna, o racionalismo de Locke, as doutrinas philosophicas do seculo xviii, a Revolução. » 2 Como se tornou Loyola o disciplinador das forças retrogradas que se dispersavam em tentativas improcedentes? Aos trinta e tres annos lembrou-se de ir estudar para Paris, depois de ter atravessado uma odyssêa de embaraços economicos e de perigosas aventuras de jornada. A vesania propagandista entre os condiscipulos tornava-o odioso aos mestres, e levou-o a receber alguns castigos escholares. Elle só pensava na reformação dos costumes; os problemas politicos do seculo eram para elle inintelligiveis. O primeiro elemento do seu futuro successo foi o ser admittido como alumno no Collegio de Santa Barbara, onde o velho Doutor Diogo de Gouvêa o tratou com benignidade. O Doutor velho era extremamente pyrrhonico, e conhecia a marcha da reforma na Europa, sobretudo a que resultava dos novos conhecimentos da lingua grega; a sua sympathia pelo hallucinado hespanhol, que alliava a passividade mystica á disciplina militar do antigo soldado das tropas de Fernando, condizia com a sua fé e com o rigor

1 Marc-Auréle, p. 672.

2 Voyage d'un Critique à travers la vie et les livres, p. 305.

com que elle queria argumentar com os hereges a punho secco. Na ferrea disciplina interna do Collegio de Santa Barbara adquiriu Loyola a comprehensão d'essa força para uma associação de propaganda religiosa. Dentro do Collegio de Santa Barbara encontrou Loyola tres condiscipulos no mesmo estado de exaltação religiosa, e com quem convivia, communicando-se entre si as suas aspirações, mais piedosas que racionaes: ahi encontrou Simão Rodrigues, um dos estudantes delrei, que veiu a assentar em Portugal as bases inabalaveis sobre que se sustentou a Companhia de Jesus; com Pedro Fabre (Lefèvre) e Francisco Xavier vivia no mesmo aposento, e este foi o iniciador das missões apostolicas no Oriente, que tanto credito deram á acção da Companhia, como Fabre lhe servira de explicador das doutrinas philosophicas na frequencia de Santa Barbara. Com estes dois condiscipulos entrou Ignacio no estudo da Theologia, e na exaltação febril dos jejuns é que lhes revelou o pensamento do seu livro dos Exercicios espirituaes, depois de terem jejuado todos tres durante tres dias e tres noites. Os Exercicia per quae homo dirigitur ut vincere se ipsum possit são uma appropriação do livro ascetico de Garcia de Cisneros, que Loyola cercara com scholios durante o seu retiro da gruta de Manresa, 1 e em que regulamentava as fórmas da contemplação interior, dando-lhe uma representação concreta, material, e, por assim dizer, palpavel, a ponto de, pela imaginação sobreexcitada pelas vigilias e jejuns, as allegorias moraes tornarem-se ante os olhos como entidades reaes. Vê-se que o antigo apaixonado das phantasias novellescas do Amadiz de Gaula, o cavalleiro parthenio do passo de armas diante da Virgem, 2 reduzia

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1 Ranke, Histoire de la Papauté pendant le xvi et xvII siècle, t. 1, p. I, p. 231. 2 A novella portugueza do Amadis de Gaula estava então no furor da leitura nas côrtes europêas; Amadiz era o symbolo do cavalleiro-virgem. Allude a este typo Jorge Ferreira, na sua comedia Euphrosina (1527): «Aos homens nam he necessario serem castos como Amadis, porque lhe assacam logo impotencia...» (Ed. Farinha, p. 148.) Na Acta publicada na collecção dos Bollandistas, t. VII, falla-se na predilecção que Ignacio de Loyola tinha pelas novellas de Amadis e Galaor: «Cum mentem rebus iis refertam haberet quae ab Amadaeo de Gaula conscriptoeci, et ab ejus generis scriptoribus, nonnullae illis similes ei occurrebant... » Nas Memorias pessoaes da sociedade do seculo xvi encontram-se traços das impressões da leitura da novella de Amadis; no manuscripto publicado em parte pelo abbade Tollemer, intitulado Le Journal manuscript de sire de Gomberville et du Mesnil-auVar, gentilhomme campagnard au Cotentin, de 1553 à 1562, vem citado o livro de Amadis, quando o sr. de Gomberville lêu em um dia de chuva aos seus operarios um episodio: «il leur lut toute la vesprée en Amadis de Gaule, comme il vainquit Dardan.» (Revue des Deux Mondes, 1 de maio de 1878.) Os humanistas da Renas

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