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Em deixar os travessos Patriotas
Só por giras mostrar o amor da patria,
E em dizer que vierão de Inglaterra,
Basbaques que daqui nunca sahirão.
Resistindo a elementos de desordem,
De que o cartorio preservava a custo,
Vida de sabio Cleto alli vivia

Em casa sua, de seus Pais herdada,
Contente de si mesmo, e desfrutando
Tranquilla consciencia, almo thesouro,
Sem o qual não ha solida ventura:
E assim passava os annos mansamente,
Immutavel no trato, e nas idéas,
Sem desejos, nem odios oppressores;
Digno padrão do sabio sobre a terra.
De seus modos, feições, garbo e conceitos
A fama que o retrata assim se exprime:
Cleto Baldo era lhano de apparencia,
Pallido, magrozinho, calvo em frente,
E antes longo que baixo de estatura.
Seguia no trajar a moda antiga,
Usava de rabicho, e cabelleira,
Fivella no sapato, e calça curta :
Cincoenta annos contava já passados,
E assim mesmo as Comadres sustentavão
Ser homem de feição, nada maricas,
Capaz de conviver em qualquer parte,
Sem nunca traspassar as leis da honra.
Feliz completamente fôra Baldo
Pelo doce correr de seus costumes,
Se ás vezes a Mulher o não vedasse,
Com varias reflexões insinuando,
Que seu contentamento era sujeito
A certas esperanças, baseadas
Em planos, e desejos d'um futuro,
Que ella só conhecia, e contemplava.
Mas de Clara os desvios innocentes
Graves casos comsigo não trazião,

E o sisudo Escrivão, homem cordato,
Estava bem disposto a dar desculpa
TOMO III.

16

A' queda natural, e primitiva

Com que o sexo gentil, de quando em quando,
Se mostra co'a razão em desavença.

Fora Clara talvez Mulher perfeita,
Se um tanto por fofices não peccasse,
Se á voz de vãos impulsos não cedesse,
Como o caso da Festa vai provar-nos,
Em que cega teimou vencendo tudo.
Deo-lhe incentivo um grande enthusiasta
Reputado sectario d'Epicuro,
Mestre Berto, por todos conhecido,
Homem chão, mas amigo de contendas.
Vaidoso do saber que possuia,

E períto nas artes de mostra-lo,
Digno orador de banco de botica,
De famosos pulmões aquinhoado;
Rhetorico profundo, e bom sophista,
Fôra Berto bem vindo em certa Côrte,
Onde muitos senhores de seu toque
Com estas qualidades vão subindo.
Depois de largos annos de solteiro,
De carreira contente, e sem cuidados,
O peito do Escrivão soffreo mudança.
Certo fogo lavrou-lhe nos sentidos,
E agora dedicado ao matrimonio,
Pôz-se em marcha em procura de consorte.
Teve pouco que andar, pois em tal busca
Não se esfalfa, nem rompe muita sola
Quem, como elle, dinheiro não pedia.
Fallando a seus amigos n'este assumpto,
Dizia Cleto Baldo muitas vezes :
Embora me não creião, mas é certo,

Que a tarefa difficil foi na escolha.

Mal constou que eu pensava em casamento,

As bellas em Goianna se alvorotão,
Qual sedenta manada ao som das nuvens,
Por saberem que o dote que eu queria,
Era simples bom senso, e não patacas.

Homem de nova expecie em mim contemplão;
Dizião entre si-Não quer dinheiro,

Qner mulher de prudencia, quer juizo.-
E todas largamente se dotavão
Da riqueza estupenda que eu pedia!
Quanta ruim galhofeira tinha a villa
A luva me apanhou, que eu no deserto
Julguei haver lançado, ao pôr-lhe o preço
De ser para mulher de bom juizo:
Em sitio conchegado me pozerão,
Mas bem certo no logro se escolhesse,
Encommendei-me a Deos, fechei os olhos,
Rendi-me á discrição a Dona Clara;
E acertei, penso eu, que por engano;
Dona Clara, morena, rosto alegre,
Olhos pretos, altura além da marca,
Affavel, serviçal, boa visinha,
Era Mulher que á todos agradava.
Seu Pai, homem de bem, fôra mascate,
E sem rival vendia pregoando
Quanta chita espantada vio Goianna,
Quanta cassa, filó, ou seda verde
A Gente de bom gosto alli trajava.
Nas missas, nos presepios luminosos,
Nos passeios á fresca domingueiros,
Podia Guimarães, o Pai de Clara,
Dizer afoitamente, e com vaidade-

Metade, ao menos, do explendor me devem.-
Já porém quinze annos decorrião;

E o pacato Escrivão inda sem prole,
Contente envelhecia entre os amigos,

Sempre hostil, sempre avesso ás novas cousas,
E no trato diario sempre o mesmo.
Prudente por systema só gastava
Das propinas um quarto mais, ou menos,
Causando tal modestia alguns enfados

Por ir de encontro aos planos da Senhora.

Deste Casal a chronica refere,

Que amavel era Cleto, que a Matrona,
Fazia alto conceito de si mesma.

Ouço contar (dizia muitas vezes
A' Visinha com quem soltava lingua)

Taes cousas, taes historias de mulheres,
Que a ser homem, de certo não casava.
Olhe, Amiga, que as ha de todo o lote,
Singulares, e asperas em tudo,
Unindo certas baldas ao semblante:
As bonitas são cheia de vaidade,
As feias, de ordinario caprichosas,
São de todas as mais impertinentes,
Não ha subido preço que as affronte,
Com tanto que enfeitadas appareção.
Dos zelos o furor suggere a muitas
Projectos infernaes, negras vinganças.
Ha mulheres que nunca estão contentes,
Ha mulheres que nunca tem saude,
Ha mulheres emfim que até pancadas
Não se acanhão de dar, quando raivosas.
Oh! que dita tiverão nossos Homens,
E que riscos da sorte não correrão!
Eu, e o Escrivão vivemos tão unidos
Que até, mal comparando ! se algum dia,
Na grave procissão da Quarta-feira,
Faltasse o bento andor dos Bem-casados,
Melhor que nós ninguem o figurava.
Eu, e Gosme (a Visinha replicava)
Tambem vivemos como a Igreja manda.
Não se encontrão na villa outros casados,
A não ser Dona Clara, e seu Marido,
Que commigo, e meu Cosme se comparem
Na perfeita harmonia, e paz completa.
Cosme não tem vontade, excepto a minha;
Assim, nunca ha motivos de contenda.

Se digo, faça-se isto, elle obedece ;

Se exprimo, quero este outro, amen, responde; Se alguma rara vez de mim differe,

Por amor do socego logo cede.

Vêde pois, Clara minha, se é possivel

Que alguem nos leve a palma cobiçada

De termos mais bondades que deffeitos !
Fallando bem de si com tal desgarro,
Largas horas durarão as conversas

Entre as duas Matronas de janella,
E mutuamente assim se ião soprando
Centelhas de vaidade, que mais tarde
Em Dona Clara incendio produzirão,
Que teve desafogo em nobre Festa;
Como o leitor verá no proprio tempo,
Se almo engenho tiver, e faculdade,
Para em tudo narra-la, como devo.
Contiguo a Cleto Baldo residia
Um loquaz Boticario, amigo velho,
Chronista social de toda a villa,
Politico adherente ao que era antigo,
Do ruidoso gamão parceiro eterno.
Em casa sua as tardes se juntavão,
Diversos moradores de Goianna.
Alli o Juiz de paz, o bom Vigario,
O Juiz de fora, e outros mais Senhores
Discorrião ardentes, todos juntos

No Bispo, em Luiz do Rego, bem lembrado
Capitão general, que alli mandara,
Nas passadas revoltas da Provincia,
Com seus heroes, ineptos, e burlescos.
O Mirabeau porém de tal concurso,
Era um Mestre de escola cujo nome
De Roberto passou a Mestre Berto.
Terrivel confusão, vasta leitura,
A mente lhe trazião sempre accesa
Em planos, em discursos, em systemas,
Que frequente estampava a seus amigos.
Perdido pelos gozos desta vida,
Sem pode-los haver da tenue bolsa,
Vingava-se em viver do pasto d'alma,
Em trovejar contra a fraqueza humana,
Em pregar as doutrinas de Epicuro,
Proferindo discursos engenhosos,
Ora serio, eloquente, e arrebatado,
Ora vulgar, raivoso, e desmedido,
Sem tento nas palavras que dizia.
Berto porém como outros opinava,
Que esta seita consiste unicamente

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