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para quem a gloriosa republica encravada na Italia é um Estado soberano. Mas essas republicas maiores differem muito entre si. O federalismo democratico da Helvecia é uma fórma da organização politica determinada por condições historicas e mesologicas peculiares, e, por isso mesmo, consideravelmente se afasta da republica unitaria e parlamentar que se implantou ao sul da Mancha e na parte occidental da peninsula iberica. E, quanto ás monarchias, não é licito collocar no mesmo plano a autocracia moscovita, o imperialismo allemão e o parlamentarismo britannico. Nem a monarchia liberal da Italia se irmana com a fórma asiatica de Estado que, ainda hoje, domina entre os turcos.

Na America, a republica expulsou a monarchia. Mas, entre as republicas americanas, apesar da grande influencia exercida pela mais forte e mais populosa, estamos muito longe da identidade de fórmas governamentaes.

Não são menos accentuadas as differenças no direito privado. Já não quero repetir, por muito vulgarizado, que, nuns paizes, prepondera o elemento romano, e, em outros, o germanico. Para salientar quanto differem os systemas de direito privado, bastar-me-á considerar, muito ligeiramente, a organização da propriedade e o regimen dos bens entre os conjuges.

Na Inglaterra, a organização da propriedade ainda recorda o feudalismo. O dominio territorial está concentrado em um numero relativamente pequeno de senhores; os bens não se consideram moveis ou immoveis, como em todo o occidente; são reaes e pessoaes. E essas expressões não correspondem ao que, segundo a tradição latina, denominamos direitos reaes e pessoaes. Os bens reaes, na Inglaterra, são os immoveis, sobre os quaes alguem exerce um direito de goso perpetuo ou vitalicio. Os bens pessoaes ou chattels são os predios possuidos temporariamente e os moveis corporeos.

Estes simples traços denunciam uma organização da propriedade por molde muito diverso dos que se encontram no continente europeu e na America latina, onde a propriedade é absolutamente allodial.

Si, comparando os outros systemas juridicos, não se nos mostra uma separação assim fundamentada, nem por isso encontraremos identidade de disposições. A organização do registo predial da Allemanha, creando, como se tem dito, o estado civil da propriedade immovel, cuja existencia, mutações e modificações constam, minuciosa e authenticamente, das averbações do registo, de modo a offerecer uma segurança absoluta ao credito, discorda, essencialmente, do systema francez da transcripção, que nós outros adoptamos, ao lado da Italia, da Belgica, da Grecia e de outros paizes, ao passo que o systema allemão, com algumas alterações secundarias, vigora na Suissa, na Espanha e em Portugal.

O regimen legal dos bens entre conjuges apresenta maior variedade. O Brasil, com Portugal e a Hollanda, consagram a communhão universal de bens; na Espanha e em varios paizes sul-americanos, impera a sociedad legal de gananciales; na França, o regimen preferido é um meio termo entre a communhão universal e a dos acquestos; os modernos codigos da Allemanha e da Suissa preferiram o que os commentadores do primeiro denominam communhão administrativa e o segundo chama união de bens. São modalidades varias de um só regimen, que vae do extremo da absorpção ou penetração reciproca dos patrimonios até á simples reunião transitoria, para o effeito de serem administrados pelo chefe da familia. Este ultimo regimen offerece uma suave transição para a completa separação patrimonial que vigora na Italia, na Russia, na Inglaterra e na America do Norte.

Referi me a dois capitulos dos mais cuidadosamente regulamentados em todas as legislações, a propriedade e a familia, porque nelles melhor se reflectem as

particularidades da organização social de cada povo. Mas, si aprofundasse a analyse, contrastes não menos fortes se haviam de revelar em outros dominios.

Além dessas dissemelhanças no modo de organizar os institutos sobre os quaes repousa o bem estar dos homens e a tranquilidade das familias, ha, nas legislações, caracteres peculiares, que as individualizam, e traços physionomicos bem pronunciados, que nos autorizam a classifical-as em grupos aparentados. E não são sómente os chamados povos solares que se assignalam por uma physionomia juridica distincta. Sem duvida, entre esses, o phenomeno da idionomia se grava em traços energicos. Mas os agrupamentos de vitalidade menos forte e de fecundidade legislativa mais preguiçosa caracterizam-se tambem, apesar dessas suas deficiencias, e, até, por causa dellas.

Abram-se os codigos civis da Europa. O italiano foi modelado pelo francez e o suisso veiu depois do allemão; mas, abstrahindo, agora, das soluções differentes que encontraram para determinadas questões ethico-sociaes ou economico-juridicas, sente-se que ha uma certa corrente de idéas e um certo conjunto de sentimentos que vibram, diversamente, nessas creações nacionaes, onde se reflecte a alma de cada um desses povos, segundo a afeiçoaram a elaboração historica e a acção do habitat.

II

E qual será a physionomia do direito brasileiro?

Dizer que, depois de termos organizado o paiz inspirando-nos, para tracejar a nossa Constituição monarchica, em idéas francezas e inglezas, fundamos a Republica segundo os moldes da federação presidencialista norte-americana, seria ficar aquem do nosso objectivo, porque essa descorada informação me deixaria na superficie dos factos que pretendo observar.

Penetrando, porém, mais intimamente, no cerne da nossa organização politica, a justiça me levará a reconhecer que, si os moldes constitucionaes, nesses dois momentos decisivos da vida nacional brasileira, não foram productos do solo, creações originaes da raça, receberam modificações valiosas, que tornaram possivel a sua adaptação ao meio patrio, e revelarão, a todo o tempo, a impressão do nosso modo de comprehender e sentir os phenomenos sociaes. E' incontestavel que alcançamos uma expressão mais larga e mais profunda da liberdade, realizando a laicidade juridica, sem subterfugios e sem concessões conturbadoras, mas, egualmente, sem a rigidez sectaria e, antes, com aquelle espirito de tolerancia, que é uma das mais bellas fórmas emotivas da solidariedade humana.

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A nossa historia diplomatica bem se pode desvanecer de alguns movimentos generosos que, pela sua significação no evolver das ideas e pela opportu nidade com que foram realizados, hão de entrar para o registo da historia geral. Aponto apenas dois muito recentes, que são dos mais caracteristicos: tratado que restituiu a lagoa Mirim e o rio Jaguarão aos preceitos do direito internacional commum, admittindo que sobre essas aguas, até esse momento de nossa exclusiva propriedade, exercesse egualmente a sua soberania, e as utilizasse para os seus interesses a sympathica, intelligente e progressiva republica do Uruguay;-e esse esforço pela paz do continente americano, em que, com egual empenho e a mesma confiança na justiça, as tres nações de maior responsabilidade da America latina, amigavelmente, se interpuzeram entre os Estados Unidos e o Mexico, á procura de uma solução honrosa, que evitasse o conflicto das armas

e consolidasse a fraternidade americana, que tem por presupposto o mutuo respeito da soberania de cada povo.

Que significam estes dois acontecimentos da vida internacional americana ? No intimo, em sua expressão psychologica, revelam-se manifestações do mesmo sentimento de altruismo.

Não é, porém, o direito publico, a organização constitucional, que desejo observar mais demoradamente. Attenderei mais de perto ao direito privado, porque elle se refere mais particularmente á personalidade individual, fala ao que o homem possue de mais intimo, e de mais profundamente querido: a sua pessoa, a sua familia, os seus bens, que representam a base economica da existencia, e a vida domestica, onde brotam e se expandem as suas mais caras affeições.

Sem duvida a liberdade é o sol da vida social, sem o qual definha e morre a personalidade. Mas nem todo o dominio da liberdade se acha sob a tutela do direito publico. Uma parcella consideravel fica entregue ás garantias do direito privado, e essa é tão importante que mais facilmente o homem se resigna a soffrer limitações na sua liberdade politica do que na sua liberdade civil.

Porei tambem de parte o direito commercial, por seu caracter preponderantemente cosmopolita, segundo, modernamente, vae melhor revelando na universalização dos seus institutos mais notaveis, e restringirei as minhas observações ao direito privado commum.

O direito civil brasileiro é o direito privado romano, que soffreu uma primeira modificação em Portugal, sob o influxo de outro meio, de outras necessidades, da assimilação de institutos germanicos e canonicos, e, novamente, recebeu enxertias no Brasil, que foi pedir conselhos e inspirações a outros guias.

Dessa longa elaboração, feita sem ordem, sem systema, segundo as solicitações do momento, resultou uma certa desharmonia no conjunto. Não é porque não pudessem institutos romanos viver ao lado de institutos germanicos ou canonicos, ou receber delles modificações beneficas. Lado a lado, coexistiram, no direito da familia, e se penetraram, a communhão germanica e o dote romano. No patrio poder, sob fórmas latinas, se insinuaram idéas germanicas. A theoria da posse conservou os fundamentos romanos, porém se desenvolveu e alargou por influencia canonica. No direito hereditario, attenuaram-se rigores romanos, ora tornando possivel a coexistencia da successão legitima e testamentaria, ora dispensando-se a necessidade da instituição de herdeiro.

A desharmonia procede, sim, da circumstancia de que ha leis obedecendo a orientações differentes. E' uma impressão que sentem todos que lidam, entre nós, com as cousas juridicas, de um ponto de vista ordinario.

Da mesma causa resultam, ainda, deficiencias legaes, e a permanencia de institutos, que são ruinas de outros tempos, prolongando a vida pela inercia dos reformadores.

Uma defesa mais previdente dos interesses moraes e economicos dos menores que tiveram o infortunio de perder os paes, ou dos que os têm indignos da sagrada missão, a que o acaso os chamou; a regulamentação do contrato de seguros terrestres, que tem adquirido um enorme desenvolvimento, a ponto de exigir o funccionamento de uma repartição publica fiscalizadora, porém que ainda não recebeu do legislador os preceitos relativos à sua constituição; as relações entre autores e editores, que apresentam todos os caracteres de uma figura distincta de contrato, porém que ainda não adquiriu nos preceitos da lei o relevo que está reclamando; o condominio, fonte fecundissima de lides forenses e desgostos, que os retrahidos

e os resignados não deixam vir ao lume dos debates; o direito do trabalho, com a protecção das mulheres e dos menores e a garantia dos operarios; a investigação da paternidade, nos casos em que a justiça a impõe; a theoria da culpa e dos actos illicitos, as estipulações em favor de terceiros e, ainda, outras relações juridicas existentes, porém a que a lei não attendeu convenientemente, revelam falhas no nosso systema de direito civil legal.

A jurisprudencia e a doutrina encarregam-se de supprir essas falhas, mas a muito custo o conseguem, porque, como energias reveladoras do direito, agem sempre dentro de limites restrictos, com vacillações, marchando lentamente, ao passo que a lei resolve as questões de modo decisivo, póde encarar os problemas em toda a sua amplitude, e actúa imperativamente.

Entre as fórmas residuarias, que se incrustaram no organismo juridico brasileiro, resistindo á acção do tempo, que as condemnou, lembrarei: as restricções absurdas á actividade juridica da mulher, e, em particular, a incapacidade civil da mulher casada; a restituição in integrum, que, imaginada como favor aos menores, pretenderam depois ampliar desmedidamente e, hoje, representa apenas uma ameaça a relações regularmente firmadas; a lesão enorme, que tem as mesmas desvantajosas applicações; o contrato esponsalicio, as arrhas dotaes, a prohibição de alienar cousas litigiosas, a theoria da sociedade civil. Exemplifico apenas, não ha necessidade de exgotar a lista.

Essas lacunas e antigualhas estão a reclamar uma remodelação em nosso direito civil, num corpo de doutrina, que o systematize e lhe dê organização compativel com o estado actual da cultura do mundo.

Mas essa reforma não deverá ser radical, attingindo as partes ainda vivazes do direito, porque este possue excellencias incontestaveis, que satisfazem a boa razão e lhe imprimem um cunho distincto de previdencia e elevação moral. A organização da familia, em geral, fomentando a solidariedade e os estimulos affectivos entre os seus membros, cercando-a do respeito de todos, encontrou em nosso direito civil providencias que correspondem perfeitamente á alta dignidade do objecto. Com alguns retoques, deve permanecer tal qual é, com a feição leiga e contratual do casamento, com a reciprocidade dos direitos e deveres dos conjuges, com a indissolubilidade da monogamia, e com essa communhão de bens, que deram, ultimamente, para malsinar, esquecendo que esse regimen é a natural repercussão economica da transfusão das almas pelo amôr, que a sociedade legaliza com o matrimonio, e attribuindo-lhe desastres, que resultam, exclusivamente, de angustiosas perturbações moraes e da delinquencia dos sentimentos, que são enfermidades sociaes da época.

O direito successorio, mormente depois da ultima reforma soffrida, corresponde, melhor do que em qualquer outro systema juridico, aos institutos ethicos e economicos, que devem animar a transmissão hereditaria do patrimonio individual.

A liberdade contratual, não prejudicada por excesso de formalismo, nem sacrificada por ausencia de providencias garantidoras; a inalterabilidade dos pactos antenupciaes, evitando as surpresas da fraude; as linhas geraes da organização da propriedade, correspondendo á formação democratica do nosso povo, merecem applausos dos sociologos e dos juristas."

E si, depois de lançar uma vista sobre o conjunto organico do nosso direito, quizermos traduzir a nossa impressão geral, não lhe poderemos dar fórma desabonadora. Ao lado das falhas e dos carunchos, brilham o acerto e a solidez de muitas providencias.

O direito feudal, pela feição oppressiva de muitas de suas providencias, pela humilhação a que constrangia os individuos, exigindo, muitas vezes, prestações deprimentes ou infamantes, era chamado o direito odioso. O direito civil patrio póde considerar-se um direito affectivo, porque um numero consideravel de suas disposições mais caracteristicas foram tomadas por considerações de sentimento. Essas restricções á capacidade feminina, certamente, não traduzem no direito patrio um gesto de menospreso, uma affirmação de inferioridade moral; pretende ser uma cortezia, embora se tenha tornado desasada; querem que a tomem por um signal de respeito e acatamento á delicadeza e ao recato das mulheres, ainda que, ao claro sol do seculo vinte, tenha degenerado em grave injustiça. Ha um personagem de RICHEPIN, movido pelos mais nobres intuitos, cujos actos resultavam sempre desastrosos, infelizes ou ridiculos, aos olhos do mundo. Neste particular, os legisladores têm sido, egualmente, desageitados como o desventurado Guignard. Offendem, quando entendem lisongear.

A restituição in integrum e a lesão, explicam-se, tambem, como exigencias de sentimento: em beneficio dos menores, a primeira, e dos sacrificados pelo infortunio ou pela pobresa de espirito, a segunda.

A communhão de bens, como já deixei affirmado, é o regimen ethico e sentimental por excellencia, unificando os patrimonios daquelles que, unindo-se perpetuamente, identificando-se espiritualmente, não podem ter interesses materiaes antagonicos. A separação de bens como que suppõe uma união transitoria dos conjuges, companheiros de uma viagem de termo proximo ou remoto. Somente a communhão universal póde significar a projecção da monogamia indissoluvel no plano economico.

A vocação hereditaria é feita segundo a ordem commum da intensidade dos affectos do succedendo. E' certo que outras legislações obedecem ao mesmo principio; mas eu não estou assignalando originalidades, procuro destacar traços de uma physionomia. Além disso, ha um numero, ainda que restricto, de legislações, em que o rigido egoismo supplantou os estimulos sympathicos, facultando os abusos da liberdade de testar. E os systemas que seguem a trilha affectiva não encontraram uma fórmula tão adequada e feliz quanto a do direito patrio.

Ainda no direito successorio, ha uma disposição interessante, do ponto de vista em que nos achamos, que, a não ser o direito russo e o argentino, supponho que nenhum outro o consagra, em nossos dias. Refiro-me á successão legitima do extranho, que exclue os parentes mais chegados, quando estes não cumprem o dever de humanidade que manda prestar assistencia e consagra desvelos áquelle que, acommettido de alienação mental, vem a fallecer sem recobrar o lume da razão. Não é um caso de desherdação, porque o louco está privado da capacidade testamentaria activa; é uma determinação da lei, proclamando que a familia existe pela reciprocidade dos affectos, e, portanto, aquelle que se compadeceu do infeliz, cujo espirito se afundou nas trevas da loucura, é mais parente do autor da herança do que os desnaturados consanguineos, porque o amou por piedade, quando os outros o deviam amar por dever. Foi o sentimento que moveu o punho da justiça para traçar esse edito.

E será um mal que o nosso direito civil se caracterize por essa feição sentimental?

Não! Absolutamente não!

O direito não é filho do egoismo, como se tem affirmado. Ha, na sua essencia, um elemento ethico. A sua finalidade não pode ser a tacanha grosseria do util individual. Ha de ser a elevada nobreza do util social. E a sociedade é um systema

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