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Não era só o sentimento da nacionalidade que se apagava pela cooperação da unidade catholica e unidade iberica na realisação do sonho imperialista de Carlos v e do seu continuador Philippe II; a lingua portugueza era abandonada, prevalecendo o castelhano na côrte de D. Manoel e D. João III, em consequencia das rainhas hespanholas com quem casaram, e dos numerosos séquitos de damas e cavalleiros que comsigo traziam. E quando no seculo XVI, as linguas vulgares começavam a exprimir pela cultura dos eruditos o caracter das nacionalidades, os nossos Quinhentistas sob o influxo da côrte escreveram grande parte dos seus versos em castelhano, chegando a ser, como Sá de Miranda, modelos de purismo. Quando Ferreira protestou em seus versos, para que se fallasse, cantasse e escrevesse a lingua portugueza, reagia contra esse habito da cortezania, e como presentindo que o emprego do castelhano atacava a individualidade politica da nação portugueza. Os versos escriptos por Camões em castelhano fôram motivados por exigencia da côrte, a que allude Jorge Ferreira, quando se queixa de que as trovas castelhanas se tinham apossado do ouvido portuguez. A namorada de Camões, D. Catherina de Athayde, era filha de uma dama hespanhola, que viera no séquito da rainha D. Catherina; não lhe era indifferente o metrificar na lingua que os compositores musicaes preferiam para as Canções da côrte. Quando Gil Vicente empregava o castelhano nos seus Autos, além da necessidade de comprazer com a côrte inteiramente hespanholisada, nem por isso deixava de con

signar o seu desdem, dizendo: «o que quizer fingir, na castelhana linguagem achará quanto pedir.» A obliteração d'esta caracteristica da nacionalidade facilitou a perversão do sentimento de patria diante da unidade catholica encarnada na pessoa de Philippe II. Os Indices Expurgatorios, introduzidos pelo detestavel Cardeal D. Henrique, dissolveram a elaboração litteraria deturpando as obras capitaes dos Quinhentistas, como Gil Vicente e o proprio Camões, fazendo com que grande numero de escriptos ineditos, ante os rigores da censura, se perdessem, como fôram as Comedias de Paula Vicente, as Poesias de Fernão da Silveira e de seu irmão Heitor da Silveira, os versos de Antonio de Abreu, de André de Quadros, de João Lopes Leitão, de Estacio de Faria, de Antonio Pereira, senhor de Basto, de André da Fonseca, de Antonio de Castilho, do Infante D. Luiz, de Diogo do Couto, de D. Gonçalo Coutinho, além de muitos Cancioneiros manuscriptos systematicamente prohibidos e destruidos por causa das Canções amorosas.

N'este quadro do seculo XVI em que o individualismo portuguez chegou ao maximo do seu relêvo, o meio social, que tudo asphixiou, condensa-se em duas datas que assignalam a ruina da nacionalidade: 1536, inaugurou-se em Portugal a Inquisição, por instigações de Carlos v, e com a perda da liberdade de consciencia, cala-se e morre o poeta que mais luctára por ella, Gil Vicente; 1580, a independencia nacional fica extincta pela inva. são de Philippe II, que impõe os seus direitos dynasticos, e, n'esse mesmo anno morre

em pura pobreza Camões, aquelle que mais profundamente sentiu e soube revelar a consciencia da nacionalidade.

A' imitação de Cassiodoro escrevendo nos Fastos Consulares de Roma: que o Rei dos Godos, Theodorico, fôra chamado pela vontade de toda a gente, tambem em 1580 consignaram as memorias do tempo, que Philippe II, ao entrar em Lisboa fôra recebido com Te Deum e arcos triumphaes, e cantado por poetas n'este acto da incorporação de Portugal na unidade iberica. Era o effeito do cannibalismo inquisitorial nas classes popu lares, e da educação dos jesuitas na côrte e fidalguia; a unidade catholica, para vencer o espirito moderno, dava toda a sua força ao chefe da Santa Liga. 1

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1 E' assombroso de venalidade o discurso que proferiu Damião de Aguiar, Procurador por Lisboa no juramento dos Tres Estados, nas côrtes de Thomar, a Philippe II: A mercê soberana, que Deus nosso senhor fez a estes reinos em dar-lhes Vossa Magestade por rei, cria nos animos de vossos vassallos o contentamento e satisfação que se pode encarecer; e assim acceitam e juram Vossa Magestade por rei e senhor, e esperam as mercês que lhes tem promettidas, etc. Vem no rarissimo livro do contemporaneo Isidro Velasquez Salamantino, Casos dignos de cuento. Lisboa, 1583.

I

VIDA DE CAMÕES

EPOCA PRIMEIRA

Nascimento, seus ascendentes e educação litteraria

(1524 a 1542)

Um dos caracteres predominantes do seculo xvi é o relêvo surprehendente das individualidades, na acção, no pensamento, na creação artistica, nas fortes paixões, nas heroicas virtudes e até nos espantosos crimes. Estuda se o maior seculo da Historia na influencia das suas individualidades preponderantes, e por seu turno essas individualidades carecem de ser estudadas nas suas particularidades biographicas, accumulando todos os elementos que constituiram esses caracte res, esses temperamentos, que determinaram as incomparaveis energias. A comprehensão de Camões como homem e como poeta, está mais no quadro do seculo em que elle avulta de um modo inconfundivel; o seu ideal artistico illumina-se ao clarão da Renascença que ainda doira a decadencia para que avança a

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