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se entende pelos planos de vida expostos em uma carta attribuida ao poeta, publicada pela primeira vez por Juromenha: «Tomei o pulso a todos os estados da vida, e nenhum achei em perfeita saude; porque a dos Clerigos para remedio a vêjo tomar mais da vida que da salvação da alma; a dos Frades, inda que por baixo dos habitos tem uns pontinhos, que, quem tudo deixa por Deus, nada havia de querer do mundo; a dos casados é boa de tomar e ruim de sustentar e peor de deixar; a dos solteiros, barca de vidro sem leme, que he bem ruim navegação: ora temperai-me lá esta gaita, que nem asi, nem asi, acharás meo real de descanso n'esta vida...» 1 Conta Manuel Corrêa, que nos ultimos annos de sua vida Luiz de Camões comprazia-se em ir ouvir as theses de Theologia moral ao visinho convento de S. Domingos; era um resto da sympathia que essas questões lhe mereceram na epoca dos primeiros estudos, quando hesitava ante a carreira ecclesiastica. No Cancioneiro manuscripto colligido por Luiz Franco, que a si se dá o titulo de Companheiro em o estado da India e muito amigo de Luiz de Camões, vem uma Elegia celebrando a Sexta feira da Paixão, acompanhada de um Soneto dedicatorio, que o visconde de Juromenha considerou como composição dedicada por Camões a seu tio e depois de eleito em 1539

1 Juromenha, Obras de Camões, t. II, p. 17: apparece em um paragrapho inedito de uma das suas Cartas impressas, e se encontra em um manuscripto que possuo, onde esta Carta vem por integra.>

Prior Geral. Pelo menos, no comêço da Elegia ha umas allusões ás suas funcções pas

toraes :

Divino, almo pastor, Delio dourado,

A quem de Amphrisio já viram os prados
Guardar formoso, rico e branco gado.

Os setenta e dois Conegos cruzios usavam effectivamente habito branco. E no Soneto allude-se tambem ao seu caracter de religioso:

A ti, senhor, a quem as sacras Musas,
Nutrem e cibam de porção divina,

Este pequeno fructo, produzido
Do meu saber e fraco entendimento,
Uma vontade grande te offerece.

Se for de ti notado de atrevido,
D'aqui peço perdão do atrevimento,
O qual esta vontade te merece.

No fim da Elegia torna a referir-se á veneranda individualidade a quem era dedicada:

Recebe, pão da vida, este pequeno
Sacrificio de mim, á sombra escripto
De um alto freixo d'este valle ameno.

E dá-me tanta graça e tanto esp'rito
Para que sempre louve, qual espero,
O teu saber profundo e infinito.

Tomára ser Virgilio ou ser Homero,
Sómente no saber, que foi divino,

Que ser o que elles foram não no quero. 1

1 Soneto CCCXLIX; e Elegia XXIX. Ed. Juromenha.

N'esta Elegia faz o poeta um alarde de conhecimentos mythologicos, misturando-os com symbolos christãos, como quem estava imitando Sanazzaro; alli se apontam as Nymphas, as Nove irmãs, Timbreo, Phebo, a Hesperia, Thetis, Xanto, Galatêa, Daphne, Clio, Panopea, Doris, Zéphyro, Favonio, Clais, Aquario, Piscis, Europa, Pellio, Ossa, Ema, Pindo, Atlante, Japiter, Phlegra e Acheronte. Terminando a composição, indica o logar em que a escrevera; seria o valle ameno a mata do mosteiro de Santa Cruz. A Elegia é desproporcionada, com uma abundancia facil, de de quem dominava o verso endecassyllabo.

O triumpho da eschola italiana, iniciada por Sá de Miranda no seu regresso a Portugal em 1526, era definitivo; Dom Manuel de Portugal, amigo de Camões, adheria áquelle movimento litterario, e o atrevimento a que no Soneto que fica citado alludia Camões, consistiria na versificação em metro ende. cassyllabo, abalançando-se a escrever em tercetos ou capitulo, como se chamava a essa fórma estrophica. 1 Camões tornou a tratar este assumpto em uma outra Elegia mais breve A' Paixão de Christo Nosso Senhor, como quem se penitenciára da sua primeira exuberancia. No final da Elegia xxix, o verso: «To

1 O Dr. Storck, na Vida e Obras de Luiz de Camões, (p. 240) traz: «Anteriormente, julguei não dever affirmar nem negar a justiça da hypothese de Juromenha e Braga. Hoje digo que essas poesias devem ser retiradas das Obras camonianas, emquanto não se apresentarem provas da sua authenticidade.» Têm a mesma authenticidade dos outros textos camonianos do Cancioneiro de Luiz Franco, e reforçando-as a interpretação.

mara ser Virgilio ou ser Homero» é considerado plausivelmente por Juromenha como uma aspiração do poeta á concepção de uma Epopêa nacional.

Notando Faria e Sousa nas composições lyricas de Camões a expressão precoce d'esse pensamento realisado na edade madura, é este facto mais uma prova da authenticidade da Elegia da Paixão. Não deixaria de suscitar esse pensamento o Panegyrico de D. João ш publicado por João de Barros em 1533, no qual exaltando a poesia heroica em que «se cantavam antigamente os feitos notaveis dos grandes homens-o que se fosse usado em Hespanha e toda a Europa, se me eu não engano, mais proveito de tal musica naceria, do que nace de saudosas cantigas e trovas namoradas » João de Barros referia se ao enlêvo das Eglogas de Bernardim Ribeiro, e do Crisfal de Christovam Falcão, que empolgavam todas as emoções; e possuido da concepção historica, comprehendia a opportunidade ou o realismo da poesia heroica para os talentos do seu tempo. E' possivel que a semente da sua palavra germinasse na mente do joven poeta, por que a aspiração a realisar a Epopêa portugueza transparecia por vezes nos versos lyricos como uma expressão da sua pujança.

A admiração pela poesia da Eschola italiana não o tornava incompativel com as velhas fórmas nacionaes. Os talentos poeticos do joven escholar foram conhecidos e immediatamente aproveitados para os divertimentos dramaticos da Universidade, nas férias dos estudos. Na reforma de D. João III man

da se regular as leituras de Direito pelas divisões seguidas na Universidade de Salamanca; por esta dependencia não admira que em Coimbra se seguissem os mesmos costumes escholarescos. Nos Estatutos da Universidade de Salamanca estabelecem-se as epocas em que se permittem as representações scenicas: La Pascua de Natal, Carnes toliendas, Pascua de Resurrecion y Pentecostes de un año saldran los estudiantes de cada uno de los Colegios a orar y hazer declamaciones publicamente. Item, de cada Colegio cada año se representará una comedia de Plauto y Terencio, y Tragicomedia, la primera el primero de las octavas de Corpus xpi y las otras en los domingos siguientes; y el regente que mejor hiziere y representare las dichas Comedias o Tragedias se le den seis ducados del Arca del Estudio y sejan juezes para dar este premio el Rector y Maestro-escuela. >> Era este costume commum a todas as Universidades da Europa, e encontram-se manifestações em Coimbra, nas Escholas de Santa Cruz, no Collegio Real, e ainda sob os Jesuitas com as suas apparatosas Tragicomedias latinas. Eram um exercicio litterario e um divertimento ferial. Camões refere-se a este costume, e á festa escholar em que eram mais ruidosas as representações; assim no Auto de El-rei Seleuco, diz: «Tu fazes já melhores argumentos que moços de Estudo por dia de San Nicoláo. Camões era um d'esses que

1

1 Ap. Vidal y Dias, Memoria historica de la Universidad de Salamanca, p. 94.

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