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versão a Camões, como tentâme nos seus estudos de Coimbra? Se os endecasyllabos não condizem com a perfeição que já tinha Camões n'este metro, como se vê pela Canção IV, em que se despede de Coimbra, nos extensos Commentarios em prosa vêm factos que incitam á presumpção de ser obra do poeta ; vêm ahi citados onze Sonetos de Petrarcha explicando o pensamento do auctor dos Triumphos, e esses mesmos Sonetos fôram conhecidos e muitos d'elles traduzidos por Camões; certas explanações mythologicas lá vemos citadas, que depois foram elaboradas artisticamente pelo poeta, como os Sonetos de Leandro e Hero, de Jacob e Rachel, a tradição de Stratonice, thema do Auto de El-Rei Seleuco, as comparações de Canace, Baccho considerado deus indiano, o dito celebre de Scipião, que elle empregara. N'estes Commentarios acham-se factos que se encontram na Glosa de Gesualdo, publicada em 1553, o que nos dá o limite em que trabalhava n'estes estudos criticos, que foram interrompidos, e ficaram por aperfeiçoar. Esta mesma data de 1553, em que estava Camões vehementemente sugestionado para a elaboração dos Lusiadas, é tambem indicio do motivo do abandono d'esse esboço fragmentario da versão dos Triumphos de Petrarcha.

O Dr. Storck rejeita a attribuição a Camões, fundamentando em que não acha nas obras do poeta o « minimo vestigio dos largos estudos que o ignoto traductor ou antes. commentador de Petrarcha dedicou ao Cyclo bretão e ás biographias dos trovadores provençaes.» (Vida, p. 243.) Para a vida dos

Trovadores bastavam as noticias publicadas por Nostradamus em 1518; para as Novellas da Tavola Redonda, as suas relações com Francisco de Moraes, que dedicára o Palmeirim de Inglaterra á Infanta D. Maria, e a copia do Livro de Joseph ad Aramatia offerecida a D. João III, pelo Dr. Manoel Alvares (na Torre do Tombo, Ms. n ° 643), como os trabalhos novellescos de Jorge Ferreira de Vasconcellos e de D. Gonçalo Coutinho, no mesmo cyclo, mostram-nos que bem podia conhecer essas Novellas do Cyclo bretão, mas que o seu ideal historico levava a desprezar, como nos Lusiadas declara de Orlando e do vão Rogeiro. Junto á Diana de Monte-Mór, tambem foi publicada uma versão do Triumpho do Amor, em redondilhas, da qual Gallardo achou uma lição mais completa em um Cancioneiro manuscripto; vê se que essa obra de Petrarcha seduzia os poetas quinhentistas.

Na epoca em que saíu Camões de Coimbra, já frequentava as escholas a geração que achamos memorada pouco depois em 1544; era reitor no Collegio de S. Miguel Francisco de Mesquita; collegiaes D. Antonio da Silva, que veiu a ser capellão de D. Sebastião; Manoel de Quadros, que morreu em Alcacer Kibir, e irmão de André de Quadros, amigo de Camões; Manoel da Fonseca, que foi corregedor da côrte e primeiro juiz do Fisco; João de Araujo, que veiu a ser deão de Leiria; Manoel de Vide, que foi desembargador do paço; Manoel de Almeida, que foi corregedor da côrte e Antonio de Barros, que governou o Priorado do Crato. No Collegio de Todos os Santos, era reitor Aleixo de Figueiredo, e

collegiaes Rodrigo Lopes de Carvalho, Francisco Pinheiro, Antonio Serrão, Fernão de Brito, João de Seixas, Luiz de Castilho, filho de Diogo de Castilho, e Gonçalo Pires, filho de Duarte Pires, mestre das obras dos dois Collegios.

Quando Camões deixou Coimbra, em fins de 1542, ainda o ensino humanistico não estava corrompido pela falsa comprehensão da antiguidade e negação de todo o espirito nacional dos Jesuitas. 1

E' a alliança d'estes dois elementos que equilibra o genio de Camões, tornando-o superior aos melhores espiritos exclusivistas da Renascença. Pela leitura das suas obras descobre-se logo duas educações distinctas, apparentemente antinomicas, mas no fundo solidarias: Os seus versos estão cheios de paradigmas, que provam o conhecimento que tinha de Homero, de Virgilio, de Petrarcha e Sa

1 Sobre o caracter do ensino litterario dos Jesuitas traçou Michelet este scintillante juizo: «E' deploravel vêr protestantes e livres pensadores (Bacon, Ranke, Sismondi, Augusto Comte) louvarem os Jesuitas como mestres e excellentes latinistas. Elles tiveram um conhecimento superficial da Antiguidade. Evidentemente, nunca lêram nem conheceram os grandes eruditos do seculo xvi. Nas mãos dos Jesuitas tudo se tornou froixo e falso. Estas linguas másculas e altivas, o que ficaram sendo nos seus Collegios? Quão molles e effeminadas! O seu reinado de humanistas póde chamarse com inteira verdade, o predominio da chateza.

Nunca o diabo fará à obra de Deus. O mais que faz são contrafacções ignobeis e caricaturas. O fructo jesuitico, derivado da Italia corrupta, do grotesco idylio de Tirsis e de Corydon, envenenou a Italia.» (Nos Fils, p. 149, 4.a ed.)

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nazzaro, da Mythologia, dos Geographos gregos e das Encyclopedias em que se condensavam os estudos classicos; mas todo este pezo de erudição e auctoridade dos preconceitos humanistas não conseguiram apagar da sua alma o sentimento nacional, que transpira na sympathia das allusões aos Romances populares tradicionaes, aos Anexins e modismos vulgares, na preferencia dada á fórma vicentina do Auto em seus tentâmes dramaticos, nas lendas que matizam a Historia de

1 O Dr. Wilhelm Storck, que estudou laboriosamente as Obras de Camões, traduzindo-as para allemão integralmente e commentando-as, descreve com rigor os seus conhecimentos classicos:

«Os seus conhecimentos philosophicos derivam, quanto a pormenores, na apparencia, da leitura de Diogenes de Laerte, Plutarcho, Cicero, Valerio Maximo, Aulo Gellio, Plinio senior e das Anthologias. Encontram-se a miudo reminiscencias d'estes escriptores em passagens camonianas, dando logar á resolução de pequenos problemas, principalmente quando nos achamos em frente de textos deturpados. Mas os auctores classicos que ennumerei, não são os unicos gregos e romanos que o Camões manuseava frequentemente. As suas poesias dão testemunho claro de como conhecia ditos e feitos de uma longa série de escriptores illustres: Homero, Aeliano, Xenophonte, Virgilio, Lucano, Ovidio, Horacio, Plauto, Livio, Eutropio, Justino, Ptolomeu, e outros, ficando indecisa a questão se lia as obras gregas no original.

Os variadissimos conhecimentos de Camões, que se manifestam em todas as suas obras, documentando uma vasta leitura... Saber muito era o caracteristico d'aquella época; a instrucção encyclopedica, sonho dourado dos humanistas. A quantidade e variedade de saber scientifico, manifestado nas obras de Camões, causa admiração, principalmente se considerarmos a raridade de bibliothecas volumosas, e o alto valor dos codices impressos e manuscriptos, que n'aquellas éras

Portugal, que elle soube com tanta arte enramalhetar nos Lusiadas. Esta educação nacional, apagada em Ferreira systematicamente e em Caminha, fez-se de um modo natural e simples na boa soltura das margens do Mondego, em uma terra animada de tradições historicas, e de costumes velhos e caracteristicos. Esta educação é que fortificou o seu individualismo, alentando-lhe o sentimento da Nacionalidade, que se tornava mais intenso, quanto mais os acontecimentos tendiam para apagal-o. Por ventura esse sentimento, que

difficultava aos estudiosos a acquisição e até mesmo o uso dos livros. Mas admiração muito mais intensa desperta a fidelidade e segurança da memoria do Poeta. Quer esteja em Coimbra, quer em Lisboa, em Ceuta, Goa, Malaca, Banda, Macau ou Moçambique, quer ande em terra ou vogue no alto mar, em toda a parte elle dispõe dos seus multiplices e vastissimos conhecimentos em historia universal, geographia, astronomia, mythologia classica, litteraturas antigas e modernas, poesia culta e popular, tanto da Italia como das Hespanhas, aproveitando-os com a mais perfeita exactidão, como filho legitimo do periodo de Renascimento e Humanista dos mais doutos e distinctos do seu tempo. E um dominio como o de Camões sobre tão vasto campo de conhecimentos, não se alcanca sonhando, da noite para o dia, mas sim estudando assidua e methodicamente com engenho e arte, talento e enthuziasmo, ajudado por mestres e guias e a estimulante companhia de camaradas e émulos. Não é difficil adivinhar quem proporcionaria ao adolescente occasião de consultar e lêr bons livros. Dom Bento havia de pôr á disposição do sobrinho o que o seu peculio tinha de aproveitavel, e franqueava certamente, como Prior Geral e Cancellario da Universidade, ao talentoso e tenacissimo collegial e estudante Luis Vaz a Livraria de Santa Cruz e a bibliotheca da Universidade.» (Vida e Obras de Camões, p. 224 a 228.)

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