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e as damas da mais alta gerarchia, como D. Francisca de Aragão, lhe pediam versos ou lhe davam Tenções para glosas, é que se facilitaram as appresentações, pela intimidade que tinha com outros fidalgos tambem poetas e dignatarios do paço. Dos fins de 1542 a 1543 passou Camões vida desafogada, sem outra occupação mais do que despedir-se da sua mocidade. Observa o Dr. Storck: <dando ou acceitando por provado que Simão Vaz de Camões e D. Anna de Sá residiam em Lisboa de certo que davam casa e mesa ao moço descuidado e ocioso, que desperdiçava o seu tempo a versejar, a atar e desatar amores, a vaguear pelas ruas e praças de Lisboa, folgando a deshoras com amigos e companheiros em recontros e pendencias de mancebos, brigando de noite com outros valentões e deixando-se arrebatar a desafios e duellos.» (Vida, p. 271.) Embora o Dr. Storck exagere o quadro e o antecipe, é certo que n'esse anno de 1543 se manifestou «bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer mulher abalam.» (Filodemo, p. 415.) Fôram as damas que primeiro o admiraram, e o attrahiram para a côrte.

A passagem repentina de um meio intellectual e contemplativo, como era a vida confinada n'um Collegio universitario, para a agitação ruidosa de uma Côrte turbulenta e festiva, bastava para produzir um deslumbramento e desequilibrio moral na organisação emotiva de um adolescente, emquanto se não adaptasse a esse meio. Maudsley, na Pyhsio· logia do Espirito, considerou este phenomeno: «Quando uma grande e subita revolução

do eu é produzida por uma causa externa, ella é cheia de perigos para a estabilidade mental do individuo; nada é mais perigoso para o equilibrio de um caracter do que o facto de collocar um individuo em circumstancias externas completamente differentes, sem que a sua vida interna ahi se tenha preparado ou adaptado;...» (Op. cit., p. 421.) No seu regresso de Coimbra para a populosa Lisboa em 1543, na impetuosidade e soltura. dos seus dezenove annos, Camões, suscitado pelas impressões de uma larga sociabilidade, estava longe de encarar a sério o problema da vida na sua fórma concreta de fazer carreira. E essa incapacidade momentanea, transitoria, era considerada como consequencia da sua excepcional organisação poetica. Amisades perigosas o envolviam n'estas diversões, que tanto contrastavam com os dias serenos de Coimbra; nos Côrros e Pateos de Comedias conheceu esse frade franciscano ribaldo Antonio Ribeiro Chiado, que chegou a representar diante de D. João III o seu Auto da natural Invenção; por ventura valentões como Calisto de Siqueira, ou escholares como Luiz de Lemos, o acompanhavam na espontaneidade d'aquelle temperamento impulsivo. Em uma Carta de Camões, que esteve inedita até 1904, encontram-se traços d'esta pittoresca existencia folgasă; falla na taverna

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CALLISTO DE SIQUEIRA, filho natural de Francisco de Siqueira, Escrivão da Cosinha del Rey, mulato mui conhecido por valente, homem grande espingardeiro... (Couto, Decada vIII, 7.)

do Malcosinhado, onde se encontravam sempre <uns Cupidos valentes, dos quaes suas alcunhas são Matadores, Matarins, Matantes, e outros nomes derivados d'estes, porque se acham com cascos e rodelas, cum gladiis et fustibus, como se Nosso Senhor tivesse de padecer outra vez.» O Matante era o typo comico do Espadachim dos Autos populares, como se vê por umas coplas de Caminha; por isso accrescentava Camões: «Na paz mostram coração - Na guerra mostram as costas», observação que mais tarde repetiu com sarcasmo na satira dos Disparates da India. Seria d'este tempo a alcunha de Trinca Fortes, que lhe poz o poeta Chiado; Juromenha encontrou em um manuscripto: «um Epigramma do seu amigo Antonio Ribeiro Chiado, em um certâme poetico e gracioso, sendo o prémio posto por um fidalgo uns melões, que tinha em uma giga uma regateira:

Luisa, tu te avisa

Que taes melões lhe não dês;
Porque esse que ahi vês,

Trinca Fortes mala guisa.» 1

Nos Manuscriptos da Collecção pombalina, n.o 133, vem a folhas 124 o Epigramma completo, com a rubrica: Trova que disse hu francez a hua regateira. O verso final tem a variante: «Triquesfortes males gisa», que parece uma deturpação. Em seguida vem outra quadra com a rubrica: «Resposta de Camões achando-se presente:

1 Jur., Obras de Camões, t. 1, p. 137: não cita o manuscripto.

Luisa, quem sem camisa,
Te colhera entre os lençoes;
Não me deras dois melões
Que sejam de boa guisa.» 1

Na Ecloga XV, ou funerea, descreve Camões esta crise passageira da vida em Lisboa, que durou apenas até á sua entrada na côrte:

Emquanto este pastor o pensamento
Logrou, sem que em amores o empregasse
Se não só em buscar contentamento;

Festa não se fazia em que faltasse

A sua frauta que elle assi tangia,

Que outra nunca se ouviu que lhe egualasse.

Já agora não é aquelle que soía,

Vejo-o na condição todo mudado;

Mudada tambem d'elle está a alegria.

Essa mudança de condição foi uma consequencia decisiva da sua entrada na côrte, franqueada pela prestigiosa fama de um ge

1 Lopes de Mendonça publicou estes Epigrammas nas Actas das Sessões da Academia, (2.a Classe, vol. II, pag. 17) sem indicar o numero do Ms. Pombalino. E aprecia Este improviso, sem a menor pretenção litteraria, de um feitio popularmente libertino, ageita-se bem á indole irrequieta e folgazã, maliciosa e sensual do estudante brigão, do qual devia desabrochar mais tarde o sublime Epico.» O nome de Trinca-fortes ainda era popular no seculo XVII, nos Villancicos:

Eu esta pobre camisa
Vos offereço, senhora;
Supposto que venha agora
Trinqua-forte, mala guisa.

(Anth. port., pag. 327.)

nio excepcional, que suscitou logo as mais profundas invejas, que lhe complicaram a existencia, e a psychose de um immenso amor, que se tornou uma angustiosa fatalidade. Esse anno de descuido, que se póde definitivamente fixar em 1543, reapparece nas suas recordações como um contraste de encanto diante das paixões e decepções que o envol

vem.

Na Ecloga II, descreve Camões aquelles primeiros tempos da vida de Lisboa ainda descuidado de preoccupações amorosas:

Que bem livre vivia e bem isento,
Sem que ao jugo me visse submettido
De nenhum amoroso pensamento!

Lembra-me, amigo Agrario, que o sentido
Tão fóra de amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.

De varias côres sempre me vestia;
De boninas a fronte coroava,
Nenhum pastor cantando me vencia.

A barba então nas faces me apontava,
Na lucta, na carreira, em qualquer manha
Sempre a palma entre todos alcançava.

Da minha tenra edade, em tudo estranha,
Vendo, como acontece, affeiçoadas
Muitas Nymphas do rio e da montanha;

Com palavras mimosas e forjadas,
De solta liberdade e livre peito,
As trazia contentes e enganadas.

Mas não querendo Amor, que d'este geito
Dos corações andasse triumphando,
Em quem elle creou tão puro affeito;

Pouco a pouco me foi assi levando
Dissimuladamente ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.

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