duzivel agonia do espirito que esta doutrina deve ter produzido desde que foi pela primeira vez propagada; quantas reflexões amargas, que pungimento agudo de remorsos, que temores agonisantes, que torturantes exames de consciencia, que terrores medonhos produzidos nas consciencias anciosas e delicadas por uma doutrina, que ultrapassando muito em barbarie tudo quanto a su perstição a mais brutal dos selvagens ainda pôde conceber.-para mais é ensinada do alto de milhares de pulpitos em todos os paizes civilisados, posto que não haja um individuo com entendimento claro, que analysando rigorosamente os seus pensamentos e examinando severamente o que esta doutrina significa, possa dizer no imo de seu coração que crê n'ella. A esperança e o terror, que assentam sobre o instincto da propria conservação em quanto ao futuro, são as duas paixões mais poderosas da nossa natureza, e é sobre ellas que se firmou a religião, que trabalha com todos os artificios poderosos do seu systema, sendo o seu fim e o seu effeito o produzir, não uma subordinação saudavel do sentimento á rasão, mas um predominio doentio da emoção. 1 1 Como este terror levava pela depressão nervosa á apathia, os Jesuitas contrapozeramlhe a esperança, cujos effeitos se obtinham pelas obras, com que se compravam as indul. gencias. D'aqui toda essa Moral accommodaticia, cheia de restricções mentaes, de sophis 1 Pathologie de l'Esprit, p. 156. mas capciosos, fazendo o jogo entre o terror e a esperança, para estabelecer a direcção espiritual e apoderar-se dos individuos pela abdicação da propria vontade. Estes temerosos agentes da psychose morbida entraram em uma Côrte, em que a religiosidade appa. ratosa do monachismo ameaçava de absorver a sociedade civil; a familia real, numerosa, cahida na degenerescencia pelas suas terriveis hereditariedades, achou nas doutrinas dos Jesuitas o encanto e a seducção da religiosidade subjectiva systematisada nos Exercicios espirituaes; e essa religiosidade não era incompativel com os galanteios da côrte, com os amores aventurosos, com os interesses obscuros, porque na penitencia estava o recurso para todas as esperanças. O predominio dos Jesuitas estabeleceu uma verdadeira crise social, que em menos de duas gerações tinha transformado o caracter da sociedade culta portugueza, desnacionalisada e mesmo deshumanisada. O casamento da princeza D. Maria com o princepe Philippe de Castella, em 1543, a par das grandes festas palacianas produziu profundos despeitos, que vieram tornar mais sombria a côrtę. O pedido que trazia o embaixador hespanhol era para a Infanta D. Maria, irmã consanguinea de Dom João III, distincta pela sua belleza e cultura. Approuve a D. João III substituil-a pela princeza D. Maria, sua filha, quasi ainda na infantilidade. Esta perfidia, com os embaraços constantes que o rei oppunha para que a Infanta não fosse para sua mãe, casada em segundas nupcias com Francisco 1, mostram que a sua religiosidade não estava de accordo com a moralidade. A Infanta manteve-se em uma serenidade de espirito reveladora de uma intelligencia superior, creando em volta de si uma atmosphera de cultura litteraria e artistica, proporcionando lhe verdadeiros gosos moraes. O Infante D. Luiz, que se intromettia no governo do irmão, tinha seus intuitos de casar com a princeza que ia ser futura rainha de Hespanha. A surpreza da resolução de Dom João III desnorteou-o; e fez manifestação do seu resentimento em umas Trovas propheticas sobre as consequencias d'esse casamento castelhano para a autonomia de Portugal. Em uma Miscellanea manuscripta da Bibliotheca do Porto, e no Cancioneiro da Bibliotheca de Evora, encontram-se essas Trovas que se fi· zeram quando El Rei D. João III casou a princeza D. Maria, sua filha, com Filippe, filho do Imperador Carlos V, rei de Hespanha, e dizem que as fez o Infante D. Luiz, seu irmão. No Cancioneiro de Evora vêm publicados em nome de Nuno Alvares Pereira, irmão do Senhor de Basto, o amigo de Sá de Miranda; transcrevemos algumas estrophes: Ya se te viene llegando aquel tiempo, hermano mio, como sea tu bondad Los que por amigos tienes, fueron sus consejos sanos a provecho de sus bienes; sus pensamientos caudales En caso tan varonil y aun para peor ser, en tus passados pudieras Si muchos hijos barones que si Dios un solo mata, que tus gemidos ni quexas no valdran oro ni plata. Y aquel deseado amigo que a nuestras cuestas procuras, no te enganen las pinturas dulces que tras con sigo; que su fuero es llegar como cordero hasta donde puede hallar tiempo de poder tragar, como lobo, carne y cuero. A tus hermanos carnales Dios te los quiso dexar, por quitarte de contiendas, mal tras mal has de encontrar. Dexa las opiniones de la religião christiana, y sê christiano á la llana, que te aclara sin duelo; te quieren poner por el suelo. 1 A primeira estrophe refere-se ao abandono de Çafin e Azamor em 1543; na terceira estrophe põe em fóco a perfidia de Carlos V, que por exclusão feminina queria fundar a unidade iberica; na quarta estancia condemna o conselho louco e feminil, alludindo á rainha D. Catherina, irmã do imperador Carlos V, e coadjuvando-o no engrandecimento da Casa de Austria; na trova quinta aventa o prognostico do falecimento do princepe Dom João, extinguindo-se a successão dynastica. No Cancioneiro de Evora vem com estas trovas a nota: « quando casou a princeza Dona Maria com o princepe de Castella D. Filippe, no anno de 1453, em que parece que profetisou a morte do princepe Dom João, que Deus tem.» N'este codice falta a estrophe das opiniões e invenções christãs, em que o 1 Publicado na integra no Cat. da Bibliotheca Palha, Parte Iv, p. 178.-- No Cancioneiro publicado por A. F. Barata, p. 154, vem em nome de D. Nuno Alvares Pereira, com variantes e estancias omittidas. |