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nos gestos grave, no discurso da conversação saborosa e lida, e de bom senso para dizer as cousas com sal e gosto de quem as ouça, e affeiçoada a cousas grandes, e que tome de véras o exercicio das boas letras e maneiras, para que o que a conversar lhe dê credito como a pessoa habil e destra no que diz e pretende; pois o decurso da vida faz muito ao caso para isto... Não se deve pensar que logo em dois dias se alcança o supradito. Annos requer, tempo e experiencia e occasiões, e n'este intuito dar-se de véras á boa lição, pois tem esta differença da conversação viva, que não se acha n'ella senão o bom que aquelles disseram, e n'esta outra ha máos trechos; por que se é continua cansa, se grosseira dá cuidado, se larga falta com que entretêl-a, se curta fica sempre metade por dizer, principalmente se é com quem se gosta de tratar; e a outra toma-se quando se quer e deixa-se quando enfada, e faz-se d'ella um habito de soffrer, de entender, de esperar, de perseverar, pois seus fructos não se colhem senão por estes meios...> 1

Depois d'este quadro que nos releva a fina sociabilidade na côrte frequentada pela joven Luisa Sigêa, apparece-nos um outro aspecto a que allude Camões, fallando no Auto do Filodemo de: Huns almofaçados, que com dois ceitis fendem a anca pelo meio, e se presam de brandos na conversação, e de fallarem pouco e sempre comsigo dizendo que não

1 Publicada em original castelhano com outras na Revue hispanique, vii anno, p. 280 a 284.

darão meia hora de triste pelo Thezouro de Veneza; e gabam mais Garcilasso que Boscão; e ambos lhe sáem das mãos virgens; etc. Uma das Cartas familiares de Loysa Sygea, em castelhano, que se guarda no Museu Britanico, trata d'este sentimento da tristeza, da qual transcrevemos alguns trechos, que nos representam o meio moral em que se vivia:

< Senhor. Bem parece que haveis pouco experimentado que cousa é tristeza, pois me pedistes est'outro dia que vos dissesse qual era a causa porque estando alguem triste fal lava e escrevia melhor do que estando alegre; e crêde-me, que se vos não estimasse tanto que a resposta d'isto deixára á mesma tristeza, que muito á vossa custa vos ensinára seus effeitos;..... Define a tristeza: << um habito de larga continuação de não vêr alguem o que deseja, e se o vê, acabar-se-lhe ao começar, que a alma contrae.» E descrevendo as variedades da tristeza, fixa uma que é uma conta feita de larga experiencia de trabalhos, uma determinação inteira de não gostar de nada. causada por continuos desgostos, um desengano de alma quieta que se alcança por largo uso de descontentamentos, e por clara mostra de desejos não cumpridos; ...nos principios é dura como a morte, depois quanto mais nos entregamos a ella mais contente se está. Considera esta tristeza em quanto ás edades; nas dos môços <as mais das vezes por affeição demasiada a cousas impossiveis; ..na edade varonil são de honra e estima...; na edade madura, são de cansaço, porque o conhecer a brevidade

da vida, que sempre lhe vem á memoria mais do que aos outros, e não lhe ter succedido o que desejavam, tira-lhes toda a esperança. > Luisa Sigêa, que acabou em tristeza a sua vida prematura, conhecia este problema moral pela convivencia com a excelsa Infanta D. Maria na sua sublime mudez com que soube occultar annos de verdadeira tristeza. A bella conversação em que Luisa Sigêa era eximia, pela opulencia de referencias dos escriptores classicos e reflexões moraes, fazemnos comprehender essa chamada Academia da Senhora Infanta, em que se cantavam e tocavam as numerosissimas melodias, que andavam em voga pela Europa.

A presença de Paula Vicente e Angela Sigêa em casa da Infanta D. Maria denuncía o vivo interesse com que ahi se cultivava a musica vocal e instrumental. Os compositores do seculo XVI Compunham Canções para serem cantadas á viola d'arco ou rabeca, e os theoricos como Luiz Milan, Francisco Salinas, Luiz Narvaes e Enrique de Valderrabano, intercalavam nos seus livros os Cantares velhos que serviam para expressão das melodias caracteristicas. Cantavam a solas, ou como diziam então os italianos Canzone ad una voce ou monodias, em que espontaneamente se estava creando a fórma suprema da Aria. Dominavam na côrte as duas influencias musicaes, a hespanhola e a franceza, que se podem bem personificar a primeira em Paula Vicente, e a segunda em Angela Sigêa. Gil Vicente tinha empregado nos seus Autos numerosissimas Canções com melodias castelhanas, nacionaes e propriamente pessoaes; mui

tas d'essas Melodias existem hoje publicadas por Barbieri no Cancioneiro musical do seculo xv, podendo-se reconstruir esta parte artistica da obra vicentina. Sua filha Paula Vicente, tangedora profissional, conhecia todo este repertorio lyrico, tão variado e rico de melodias populares, umas a solas (Soláos, de que falla Jorge Ferreira) outras coreadas ou Guayadas, acompanhando as dansas. A Infanta D. Maria, intima amiga de Paula Vicente, encontrava n'esta poetisa, que tambem se conservou solteira, os suaves desafogos da sua fundada tristeza, fazendo-a cantar Motes velhos, Lettrilhas e Vilancetes, que serviam para o canto, dando logar a novas imitações Îyricas para renovarem pela expressão caracteristica da palavra essas velhas e sympathicas melodias. Os Cancioneiros manuscriptos do seculo XVI estão cheios d'essas composições graciosissimas, encontrando-se com frequencia tratando os mesmos themas poeticos Gil Vicente, Camões, Caminha e Bernardes, para renovarem pela palavra a mesma melodia. E Garcia de Resende, que tambem era musico, como André de Resende e Damião de Goes, falla d'este desenvolvimento artistico da sociabilidade aulica :

Musica vimos chegar
A' mais alta perfeição;
Sarzedas, Fontes, cantar,
Francisquinho assim juntar,
Tanger, cantar sem ração.
Arriaga que tanger!
O Cego, que grão saber
Nos orgãos! E o Vaena?
Badajoz! e outros, que a penna
Deixa agora de escrever.

Aqui se accentuava já a erudição, em que prevalecia o estylo fugado sob a influencia da auctoridade dos Mestres flamengos. O gosto francez destacava-se pelo estylo harmonico simples, com a simultaneidade de vozes; vêmos n'este tempo os moralistas austeros insurgirem-se contra as musicas jusquinas, imitadas de Josquin des Près, como se vê no Auto da Ave Maria de Antonio Prestes. Esta corrente musical podemol-a representar na côrte pela influencia de Angela Sigêa, em casa da Infanta, onde as Cançonetas francezas eram vivas lembranças de sua mãe. Diante dos textos da poesia de Cancioneiro, que apparece nas Redondilhas dos nossos quinhentistas, e do conhecimento das musicas das Canções, em parte reproduzidas pelos theoricos do seculo XVI ou impressas pelos Musicographos como Barbieri e Pedrell, podemos hoje caracterisar os tres estylos das Canções de côrte, no tempo em que contribuia Camões com as suas Coplas e Voltas para tornar mais interessantes essas Melodias. Acceitava-se o estylo Fugado, obedecendo ao prestigio dos mestres flamengos, considerando as suas quadraturas com uma certa seriedade ecclesiastica. A par d'esta corrente contrapontica, que ia encontrar na Egreja o seu desenvolvimento, dominava na Côrte o estylo expressivo da Canção desenvolvendo a sua melodia caracteristica da tonalidade popular, e ligando-a sempre á palavra metrificada das Lettrilhas, Motes e Vilancetes, com que os compositores hespanhoes se adiantaram ao seu tempo, realisando o problema da alliança indissoluvel entre a palavra e o

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