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canto. A outra corrente, propriamente franceza, sem ser dominada pelo contraponto, avançava ao trabalho artistico da simultaneidade de vozes, sem abandonar o estylo harmonico simples.

A' sympathia que inspirava a situação da Infanta D. Maria, envolvida nas egoistas tramas politicas de Carlos V, Francisco I e Dom João III, e á merecida admiração que impunha o seu talento e esmerada cultura aos grandes humanistas, vinha tambem prestar-lhe preito a paixão dos poetas da côrte que a idealisavam. Camões foi o confidente de alguns d'esses amores em silencio; refere-os em umas Voltas a este Mote alheio ou anexim popular

Perdigão perdeu a penna,

Não ha mal que lhe não venha.

Um curioso linhagista colheu essa ignorada tradição amorosa explicando o sentido mysterioso dos versos de Camões, ou abo nando-se com elles. No precioso manuscripto Quarta parte das Familias nobres de Portugal, offerecido em Fevereiro de 1649 pelo Prior do Hospital do Beato João de Deus de Monte-Mór a Manoel Severim de Faria, lê-se:

--

< SILVAS Casa do Regedor. Jorge da Silva, filho terceiro do Regedor João da Silva, irmão de Diogo da Silva. Casou com D. Luiza de Barros, filha herdeira de João de Barros e de D. Philippa de Mello, de quem não teve filhos. Foi fidalgo de grandes brios e altivos pensamentos; sendo moço namorou a Infanta Dona Maria filha de El Rei D. Ma

noel, e fez taes extremos que, chegando á noticia d'Elrei D. João III, irmão da Infanta, o mandou prender no Limoeiro, onde esteve o tempo que pareceu bastante para seu castigo; e a esta prisão e amores fez Luiz de Camões umas Voltas áquella Cantiga velha: Perdigão perdeu a pena, etc., que co

meçam :

Perdigão, que o pensamento, etc.> 1

Lidas á luz de tão curiosa revelação do indiscreto linhagista, despertam estas Voltas um interesse vivissimo, illuminando a vida de Camõas n'essa brevissima frequencia do paço. As Voltas alludem á temeridade da paixão de Jorge da Silva, que tambem era poeta, e de quem restam versos mysticos:

Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto logar,
Perde a penna de voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ár, nem no vento
Azas com que se sustenha;
Não ha mal que lhe não venha.

Quiz voar a uma alta torre,
Mas achou-se desazado;
E vendo-se depennado
De puro penado morre,
Se a queixumes se soccorre,
Lança no fogo mais lenha :
Não ha mal que lhe não venha.

1 Ap. Jur., Obr., t. iv, p. 452.

(Obr., t. IV,

79.)

D. Carolina Michaëlis, no seu livro A Infanta D. Maria, (p. 70) recusando valor historico á lenda do nobiliarista anonymo, confessa: «Certo é que o grande poeta lyrico ao paraphrasear o adagio popular, pensava em qualquer aventura determinada de amor; no vôo de Icaro de algum temerario môço palaciano, que, menos calado do que o Beato Amadeo, tornara publicos os seus mais secretos sentimentos, sendo por isso despenhado, de azas quebradas e ferido, do alto dos seus sonhos. E valorisa os seus indicios pelas Voltas sobre o Mote da Infanta: Já não posso ser contente. (p. 63.) E fallando dos serviços publicos e composições litterarias, de Jorge da Silva, accrescenta: «Todos esses titulos e essas virtudes, não põem embargo a que na sua mocidade se apaixonasse por uma Infanta. Podiamos mesmo considerar a sua mystica fugida da côrte, realisada antes de 1549, segundo chronistas coévos, e a sua actividade como escriptor devoto, consequencia de seu profundo desgosto e de uma crise affectiva. A lenda dos amores de Jorge da Silva propagava-se sobre esse fundo tradicional dos amores do seu antepassado D. João da Silva pela Princeza D. Leonor, filha do rei D. Duarte, que foi casada com o Imperador Frederico III, e que se completava pela veneração

1

1 Op. cit., p. 72. D. Carolina Michaëlis cita um outro Jorge da Silva, dos Silvas de Portalegre, que n'este tempo andava na côrte, que fôra preso por communicar com o Cardeal da Silva, seu tio desnaturalisado, que outros dizem por ter amado a Princeza D. Maria, filha de D. João 1.

1

do santo, o Beato Amadeo, em que se immortalisou o namorado. No Mote glosado por Camões, o nome Perdigão tem um intuito: a allusão satirica ao Falcão da Empreza do seu antepassado D. João da Silva, com que pela divisa Ignoto Deo declarava á princeza o seu

amor.

São numerosas e interessantes as intrigas amorosas na côrte de D. João III; mas este periodo de galanteria delicada e de poesia idealista vae apagar-se pelo mesmo sôpro gelido que mirrou a floração do humanismo da Renascença portugueza.

1

Lê-se na Evora gloriosa, p. 236 e 422: Chamado antecedentemente D. João da Silva, foi filho de Ruy Gomes da Silva, famoso Fronteiro de Ceuta, e Alcaide-môr de Campo Mayor e Ouguella, e Senhor da Chamusca e Ulme, e de D. Isabel de Menezes, filha do nosso 2.o Conde de Vianna e 1.o de Villa Real, D. Pedro de Menezes, primeiro Governador de Ceuta. N'esta cidade nasceu D. João da Silva e sua irmã Dona Brites da Silva, conforme algumas noticias, e conforme a outros na de Evora, onde um e outro se educaram debaixo da tutella de um tio João Gomes da Silva; ... seu irmão, depois de se applicar ás Letras humanas e áquellas artes dignas de seu nascimento, entrou a servir no paço do nosso rei D. Duarte, onde tendo muitas occasiões de vêr a Infanta D. Leonor, se arrebatou tanto da sua rara formosura, que entre os limites do respeito devido a tão soberana pessoa, lhe consagrou todas as suas venerações e pensamentos; o que explicou engenhosamente tomando por empreza um Falcão volante com as letras Ignoto Deo. Assim viveu algum tempo. D. João, contente com poder vêr e venerar aquelle luzido sol, mas chegado o anno de 1449, vendo-o promettido ao Imperador Frederico 111, e que se ausentava para diverso horisonte, se contemplou cego e desesperado; mas sabendo que estava destinada para

B) Os amores de Nathercia - Afastamento da Côrte:
no Ribatejo e em Ceuta

Ao entrar na côrte, ainda então mal obumbrada pela recrudescencia do fanatismo inquisitorial e jesuitico, Camões, na efflorescencia dos seus dezenove annos, era admirado pelas damas do paço, que o suscitavam pondo em fóco as scintillações geniaes do seu espirito; mas aquella intelligencia fulgurante e bem cultivada procurava um objectivo a que consagrar todas as suas energias. Elle mesmo confessa-o na Canção VIII :

Um natural desejo tinha accêso
De algum ditoso e doce pensamento
Que me illustrasse a insana mocidade.

Esse pensamento de uma fecunda moci. dade, que havia encher-lhe a vida e tornal-o grande, já o tinha achado; em volta d'elle

Camareira-mór da nova Imperatriz sua tia D. Guiomar, Condessa de Villa Real, se aproveitou da occasião de tão boa companhia para poder sem nota fazer a jornada de Italia, para onde a Imperatriz se partia.»

Embarcou-se D. João da Silva em Janeiro de 1452, acompanhou-a até Sena, onde a esperavam Frederico m, Ladislao, rei da Hungria, e Alberto, Archiduque de Austria; e quando assistiu em Roma ao casamento pela mão do Pontifice, mudou de nome no de Amadeo, e vestido de saial entranhou-se no Apenino, fazendo vida penitente com os monges de S. Jeronymo. Fez-se depois frade franciscano, em um conventiculo que fundou de N. S. da Paz. Chamou-o a Roma o papa Sixto iv; faleceu em Agosto de 1482. Um livro dos seus Sonetos sagrados, conservou-se inedito no Collegio dos Jesuitas em Coimbra, segundo noticia de Barbosa Machado.

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