pairava-lhe a imaginação idealisando os feitos narrados nos pulverulentos chronicons da historia portugueza ou representados em alguns monumentos da arte nacional. Era o Canto heroico da Gente lusitana, o Pregão eterno, que se elaborava no audacioso pensamento. Os eruditos, referindo tantos feitos grandiosos, sentiam que elles não tivessem ainda inspirado um novo Homero, que os não universalisasse um outro Virgilio. Os poetas da Renascença sentiam-se mesquinhos diante d'estes supremos modelos. E ahi, nos Paços da Ribeira, quando Camões se via mais estimulado pelos quadros do Descobrimento da India representados nas colgaduras manoeli. nas, de repente o seu pensamento é offuscado pela fulguração de uma belleza feminina que The empolga todos os sentimentos do seu sêr moral. Foi a psychose subita, que o tornou namorado, apaixonado, louco pela candura e seducção da mulher que ainda mal se destaca da criança, sem a consciencia do seu poder. Desde esse momento decisivo da sua vida, o mundo appareceu-lhe a uma outra luz, sob um aspecto que até ali não vira, sentindo-se absorto em uma atmosphera de encanto: Um não sei que suave, respirando E' quasi com terror que esta fascinação que anima as cousas materiaes, o leva a considerar o surprehendente reflexo em si proprio : Porque, quando vi dar entendimento Sob esta emoção perdendo a consciencia critica, abandona-se ao sentimento exclusivo e absoluto: Assi, que indo perdendo o sentimento Oh grão concerto este ! Que faz n’um coração Na Canção v retrata os traços physionomicos, as linhas sensuaes que acordando o desejo, elevam a mulher á adoração: ..os olhos bellos, Os ondados cabellos Loiros, longos, formosos, Os dentes, que cercados A testa onde cegando A côr, a graça, o siso, Que Deus na terra deu (Jur., Obr., t, 11, 510.) O seu caracter transformou-se n'esta crise passional, em que outros poetas se afundaram, como Bernardim Ribeiro e Garci Sanchez de Badajoz; declara-o na Canção viri: Depois de entregue já ao meu desejo Vi que Amor me esculpia A gravidade, o siso, Na deslumbrante psychose, aquella mulher é unica no mundo, e somente ella o lançou n'esse estado de amnesia; na Canção xi, em que historía todas as phases amarguradas d'este immenso amor, representa Camões o rapido momento em que ficou tomado: O doce e piedoso No preludio da Ecloga I, celebrando a morte de D. Antonio de Noronha e do Prin. cepe D. João, escripta em 1554, desenha Camões um quadro da côrte de D. João III, que elle illuminara com os fulgores do seu talento: Eu vi já d'este campo as varias flores E vi perder seu preço ás brancas rosas, Camões recordava-se d'aquella constellação de damas, que traziam fascinada uma pleiada de jovens fidalgos inspirados poetas, que formavam uma nova geração de Fieis do Amor; eram D. Manuel de Portugal e Pedro de Andrade Caminha, apaixonados por Dona Francisca de Aragão; Jorge da Silva, louco de admiração pela encantadora Infanta Dona Maria; D. Simão da Silveira, sempre alquebrado pelos rigores de D. Guiomar Henriques, João Lopes Leitão procurando fallar ás damas como a borboleta que se arroja para a luz, e embora mais tarde, obedece a esta corrente de idealismo erotico o gentil D. Antonio de Noronha, bem perdido por D. Margarida da Silva. Eram estes os pastores adornados, que vira Camões n'aquelles Paços da Ribeira, onde as damas faziam inveja ás estrellas do céo, e onde viu tambem as mostras perigosas, que lhe tiraram ao pensamento o temor tão alto, perigosas porque a que o inspirava entrava apenas na adolescencia, o era dama da rainha, temerosa pela sua austeridade. Todas essas paixões foram mais ou menos transitorias, meramente galanteios ou sonhos desilludidos; somente Camões sentiu profundamente, dominado por uma absorpção abso luta. O Dr. Storek, estudando como eximio traductor as poesias completas de Camões, e compenetrando-se das situações da sua vida, chegou á conclusão fundamental : « Das poesias de Camões resulta, que na sua vida houve uma só paixão forte, profundamente arreigada, que lhe proporcionou poucos e fugazes dias de felicidade e longos annos de tormentos. Ella acompanha e persegue ainda o expatriado, através de terras e mares, na miseria do desterro - perpetua saudade da . sua alma.» Quem foi essa dama, em que se concentrou a existencia affectiva do poeta, e de quem provieram todos os seus trabalhos? Entre varios nomes poeticos de damas, apenas com expressão allegorica, apparece nos Sonetos de Camões (n.os 70, 103, 147 e 163, na Ecloga xv e em um Acrostico em redondilhas) o nome de Natercia, anagramma perfeito de Caterina, ao qual se liga na Ecloga e no Acrostico o appellido de Athayde. Reve lado furtiva ou indiscretamente o nome da namorada Catherina de Athayde, a que familia pertencia ella, quando nas Moradias da Côrte e nas genealogias contemporaneas se encontram quatro damas com este mesmo nome? 1 Vida e Obras, p. 323. Trad. Michaëlis.) |