Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

Eis um problema, que nos amores de Camões é semelhante ao que os eruditos italianos investigam na vida de Tasso sob o titulo de systema dos amores. Os biographos de Camões seguem os mesmos processos para determinarem quem fôra a inspiradora dos seus versos ardentes e realistas. Entre as apaixonadas referencias dos versos de Tasso ás damas que elle cortejava na corte de Ferrara, destacam-se tres Eleonoras, cuja belleza idealisou na synthese esthetica de Armida e de Herminia eram Leonora San Vitale, e a princeza Eleonora d'Este na fulguração dos seus trinta annos; eram Lucrezia Bandidjio e Lucrezia d'Este, casada com o Duque de Urbino. D'entre esse côro de gentileza que o inspirava na côrte de Ferrara, qual foi a mulher que lhe dominou todas as emoções? Foram as princezas? e qual d'ellas, a casada, Lucrezia, ou a solteira Eleonora ?

Eis o systema dos amores, que os eruditos tassistas resolvem com argumentos exegeti

COS.

Dá-se com Camões o mesmo trabalho de exegese, para determinar quem fosse a namorada do poeta; e esse problema já existia antes de Camões voltar de Ceuta, em 1550, por isso que Frei João do Rosario perguntava por vezes á sua confessada D. Catherina de Athayde, filha de Alvaro de Sousa, se fôra o Poeta desterrado por ssa rasão. A resposta que ella dava ao seu director espiritual era sempre negativa, que assim não era. Esta dama casara do paço com Ruy Pereira de Miranda Borges; e uma outra dama da rainha, que tinha egual nome, era muito moça,

circumstancia que levava a procurar outros homonymos. Não admira que o problema chegasse ao seculo XVII indefinido, complicando-se na tradição pelo syncretismo das homonymias. Nas Lembranças de Diogo de Paiva de Andrade, filho do chronista e Guarda-mór da Torre do Tombo Francisco de Andrade, que pretencia á phalange poetica de Caminha, Diogo Bernardes e Jeronymo Corte Real, colligiu esse erudito vagas tradições da côrte em relação aos amores de Camões, que por outras ignoradas vias apparecem mais tarde em Faria e Sousa. N'essas poucas linhas das Lembranças, em que já se systematisam os amores do poeta, pelos quaes o dá quatro vezes desterrado, vem o nome da dama desligado de toda a elucidação genealogica: « Luiz de Camões, poeta bem conhecido,... namorou Catharina de Athayde... A esta senhora dedicou muitas das suas obras, e ainda que com differentes nomes é a mesma de que falla repetidas ve

zes.»

Na sua inconsciencia de compilador, o seiscentista Paiva de Andrade, cáe logo no syncretismo tradicional de D. Catherina de Athayde, filha de Alvaro de Sousa: « Foi dama da rainha D. Catherina, e continuando os amores com boa correspondencia, mudou ella de objecto para os agrados, de que Camões se queixa em suas composições.» Como estas Lembranças permaneceram manuscriptas e

1 Publicadas por Camillo em 1880, no opusculo Luiz de Camões Notas biographicas, p. 14 e 15.

*

[ocr errors]

ignoradas, o appellido de Athayde chegou a ficar esquecido.

O nome da amada do Poeta, ao qual em anagramma de Natercia allude quatro vezes nos Sonetos LXX, CIII, CXLVII e CLXIII, continuou ignorado por muito tempo, até á descoberta da Egloga xv. João Pinto Ribeiro referiu-se a um nome genealogicamente errado; escreve Faria e Sousa: «el Licenciado Juan Pinto Ribeiro entiende que ella se llamava Doña Caterina de Almada su prima, é que la celebrava con el nome de Natercia, cifra del de Caterina, como parece del Soneto 70.» Acceitando a indicação de sua prima, apparecenos uma D. Catherina de Athayde septima filha de D. Francisco da Gama, estribeiro-mór de D. João III, e de D. Guiomar de Vilhena, filha do Conde de Vimioso; foi segunda mulher de D. Pedro de Noronha, senhor de Villa Verde. 1

E' natural que o poeta lhe dirigisse algum galanteio poetico, como era usual na côrte, e que fosse repellido como um primo pobre. Em umas Redondilhas, glosou Camões este:

MOTE

No monte de Amor andei,
Por ser monteiro de fama,
Sem tomar gamo nem gama.

VOLTA

Achei-me tão elevado

N'este monte a montear,

1 Nobiliario Ms. de D. Antonio de Lima. fl. 594. Pedatura lusitana, fl. 261 v. (Bibl. do Porto, Ms. 443.)

Que donde cuidei caçar
Eu mesmo fiquei caçado.
Caçador desesperado,

Sahi de uma e outra rama,
Sem tomar gamo nem gama.

Levava por meus monteiros,
N'esta caça de tormentos,
Os meus ais, que como ventos
Iam diante ligeiros.

Uns tão tristes companheiros
Levei, como quem ama,
Por descobrir esta gama.

A roupa de montear
Que n'este dia levava,
Era o mal que me pesava,
A corneta o suspirar.
Já não podia cessar
Como touro quando brama,
Só por buscar esta gama.

Os cães eram meus tormentos
Cheios de muita agonia,

O furão minha porfia,

As rêdes meus pensamentos.
Nem me valeu tomar ventos,
Nem penetrar pela rama,
Para descobrir tal gama.

(Obr., t. iv, p. 177.)

Ha evidentemente uma intenção de galanteio n'esta palavra gama, que se relaciona com a tradição de uma sua prima. Os desdens da orgulhosa familia do almirante nos explicarão o resentimento profundo de Camões, que lhe escapou n'esta estrophe XCIX do canto quinto dos Lusiadas:

A's Musas agradeça o nosso Gama
O muito amor da Patria, que as obriga
A dar aos seus na Lyra nome e fama
De toda a illustre e bellica fadiga;

Que elle, nem quem na estirpe seu se chama,
Calliope não tem por tão amiga,

Nem as filhas do Tejo, que deixassem

As télas de ouro fino e que o cantassem.

Como explicar este protesto no poema em que exalta os feitos de Vasco da Gama, o heroe idealisado? Com certeza, tinha sido amesquinhado, ferido na sua dignidade, na côrte. Assim como D. Catherina de Athayde (de Sousa) se excusava de ter sido amada por Camões, quando isso lhe perguntava o seu confessor Fr. João do Rosario, é tambem admissivel, que D. Catherina de Athayde (da Gama) levasse mais longe a sua excusa, determinando mesmo a descoberta da sua homonyma e verdadeira namorada.

O simples nome de Catherina de Athayde era insufficiente para se conhecer quem fôra a namorada de Camões; muitas damas da côrte usavam este nome, que só se differenciava pelos appellidos de familia. 1 Faria e Sousa, já

1

1 Já nos estudos camoneanos do seculo XIX, appareceu uma outra hypothese, formulada por D. Francisco Alexandre Lobo, na sua Memoria, (p. 177) crendo que seria D. Catherina de Athayde uma filha de D. Antonio de Athayde, primeiro Conde da Castanheira, o conselheiro mais favorito de D. João 111, que abusava do seu valimento pela prepotencia. D'aqui logicamente deduzia os desterros do poeta da côrte e as perseguições que o envolveram. Havia aqui o syncretismo tradicional do odio dos Athaydes contra Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda : « Eis por que os biographos de Camões se obstinaram em fazer da dama do poeta uma filha do favorito... Isto observa D. Carolina Michaëlis, (Vida, p. 339) notando que das seis filhas do Conde da Castanheira nenhuma teve o nome de Catherina, segundo informa a Historia genealogica de D. Antonio Caetano de Sousa.

« VorigeDoorgaan »