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Dona Juliana, ainda parenta da familia real, foi casada com o Duque de Aveiro, e nas trovas vem este final:

Perdoe Deus ao Senhor

Que isto quiz pôr em doutores,
Para dar causas maiores,

A que nasçam d'um amor
Muitos grandes desamores;
Porém isto haverá cabo,
E tudo virá a paz,

Em que pez' a um diabo

Que taes obras sempre faz.

(Canc., ed. Barata, p. 32-5.).

Esta peripecia fixa-nos o anno de 1546 como a epoca em que prorompeu a austeridade e intransigencia com as galanterias amorosas do Paço. Nas Obras de Caminha (p. 361) encontra-se um Epigramma «A João Lopes Leitão, estando preso em sua casa, por entrar uma porta a vêr as Damas, contra vontade do Porteiro. » Isto nos mostra que o que acontecia agora a este poeta e grande amigo de Camões, fatalmente lhe succederia desde que se tornaram conhecidos os seus amores.

Tambem n'este mesmo anno de 1546, depois de um prolongado estado de loucura attonita produzida por uma decepção de amor, foi o poeta Bernardim Ribeiro internado como incuravel no Hospital de Todos os Santos. A sua historia intima estava revelada na pungentissima Egloga Dialogo de dois Pastores Silvestre e Amador, (Christovam Falcão e Bernardim Ribeiro) na mutua confidencia das suas desgraças amorosas. As Saudades liam-se secretamente em traslados com a avidez de quem conhecia os persona

gens d'esse episodio da côrte manoelina. Era um exemplo tragico, que não devia repetir-se, impondo o bom senso das pessoas auctorisadas tréguas a paixões que versos vehementissimos exacerbavam e que a sensibilidade delicada das donzellas na flôr da edade podia converter em delirio. O proprio Bernardim Ribeiro retratara a ingenuidade de Aonia: << ainda então donzella d'antre treze ou quatorze annos, sem saber que cousa era bem querer...» (Saud., cap. XIX, P. 1.) Era a edade tambem de Nathercia, com a mesma ignorancia do que era bem querer, e deslumbrada pelo fulgor de um poeta como Camões, na florente edade dos vinte e um annos arrebatado pelas mais intensas emoções. Com o poeta só se importavam os que pela inveja lhe tramavam o desfavor da côrte; mas Nathercia, d'antre treze para quatorze annos é que carecia ser defendida para não cahir na depressão moral em que uma contrariedade precipitou Aonia. A' Rainha, que por espirito de protecção a admittira por Dama no Paço, muito moça, competia o atalhar aquelle amor nascente antes de se tornar absoluto. D'aqui a sua severidade, que os casos do tempo suscitavam, e de que parece ter-se arrependido referindo-se a Catherina de Athayde no seu testamento.

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1 Pelo testamento da Rainha, vê-se que a familia de D. Antonio de Lima não vivia na opulencia, pelo legado seguinte: «A D. Maria Bocanegra, havendo respeito ao muito tempo que seus paes e ella me serviram, e a que tem necessidade, mando que se dêem cincoenta mil reis de tença em cada anno, em sua vida, e

Na Elegia I relata Camões inequivocamente o seu destêrro da côrte, comparando em certa fórma a situação com a de Ovidio desterrado Na aspereza do Ponto:

D'esta arte me figura a phantasia
A vida com que morro, desterrado
Do bem que em outro tempo possuia.

Aqui contemplo o gosto já passado,
Que nunca passará por a memoria
De quem o traz na mente debuxado.

Aqui, vejo a caduca e debil gloria
Desenganar meu erro co'a mudança
Que faz a fragil vida transitoria.

Aqui me representa esta lembrança
Quão pouca culpa tenho; e me entristece
Vêr sem rasão a pena que me alcança

Que a pena que com causa se padece
A causa tira o sentimento d'ella;
Mas muito doe a que se não merece.

E divagando pelas campinas do Ribatejo, descreve Camões aquella paisagem caracteristica admiravelmente sentida e pintada por Garrett; esses tercetos têm uma vibração vívida :

D'aqui me vou, com passo carregado

A um outeiro erguido, e alli me assento,
Soltando toda a rédea a meu cuidado.

Depois de farto já de meu tormento,
Estendo estes meus olhos saudosos
A' parte d'onde tinha o pensamento,

principalmente respeitando o tempo que D. CATERINA sua filha, me serviu

Esta reminiscencia sympathica seria a consciencia de ter-lhe amargurado o seu destino.

Não vejo senão montes pedregosos:
E sem graça e sem flor os campos vejo,
Que já floridos vira, e graciosos.

Vejo o puro, suave e rico Tejo,

Com as concavas barcas, que nadando
Vão pondo em doce effeito o seu desejo.

D'alli fallo co'a agua, que não sente
Com cujo sentimento esta alma sáe
Em lagrimas desfeita claramente:

Oh fugitivas ondas! esperae;

Que, pois me não levaes em companhia,
Ao menos estas lagrimas levae.

Até que venha aquelle alegre dia
Que eu vá onde vós ides, livre e ledo;
Mas tanto tempo quem o passaria ?

Não pode tanto bem chegar tão cedo;
Porque primeiro a vida acabará,
Que se acabe tão aspero degredo. 1

Desde que os amores do paço foram conhecidos, não faltaram invejas e rivalidades para tirarem partido contra Camões. Pedro de Mariz, no prologo biographico de 1613, foi o primeiro que consignou a tradição do seu afastamento da côrte: «Vendo-se n'este desamparo, (como alguns dizem homiziado ou desterrado por huns amores no Paço da

1 O Dr. Storck chega a suppôr um decreto real que o desterrasse da côrtc. (Vida, pag. 382.) Não era caso para tal, e seria mesmo absurdo; ao afastamento prolongado chama-se vulgarmente um desterro.

Rainha.)» Manoel Severim de Faria repete: «Continuou em Lisboa algum tempo, até que uns amores, que segundo dizem, tomou no Paço, o fizeram desterrar da côrte.» O modo de expressar de Severim ainda aponta a tradição, carregando mais na fórma do apartamento, chamando-lhe desterro. Nos Commentarios ineditos de D. Marcos de San Lourenço, fallando das suas relações com as damas do paço, insiste na tradição: «... d'estes mimos, dos quaes porque os não soube usar veiu a carecer d'elles. »

E' então que entre os Camonistas do seculo XVII, se systematisam como destêrros todas as mudanças de terra, na vida do poeta; assim apontou Diogo de Paiva nas suas Lembranças: Por estes amores foi quatro vezes desterrado: uma de Coimbra, estando lá a côrte, para Lisboa; outra de Lisboa para Santarem; outra de Lisboa para a Africa; e finalmente de Lisboa para a India... » Não rejeita Faria e Sousa completamente esta systematisação formada pelo syncretismo de factos com tradições e interpretações exegeticas de expressões poeticas. Manoel de Faria e Sousa colligiu por outras vias essa tradição persistente, com elementos que esclarecem o facto: «Y ay tradiciones, que una (dama) de palacio fué la ocasion de su destierro, porque perdido por ella y haciendola perder por si, fué el remedio apartarle. D'este apartamiento se lamenta en aquella Elegia, que comiença: O sulmonense Ovidio... E accrescenta uma circumstancia que prevaleceu para este apartamento da côrte: resultó (parece que a instancia de los parientes d'ella) de desterrar

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