Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

le. Assim se pode bem notar, que ha nas tradições um fundo de verdade, deturpada quasi sempre pelas vistas systematicas dos biographos tomando as suas interpretações por factos. Por praxe da côrte: « não era permittido aos-môços fidalgos-que andavam no paço tomar trajo de varão sem terem passado á Africa, e virem de lá com certidões de valorosos.» E' pois muito natural, que sendo Camões filho de cavalleiro fidalgo lhe fosse vedada a entrada no paço sob este pretexto de ter de ir á Africa, para lhe competirem os trajes requeridos pela etiqueta. Um simples pretexto, que equivale a uma exclusão. Isto explica por que foi Camões para Ceuta, depois da excursão breve pelo Ribatejo, e as suas ulteriores esperanças no regresso á côrte em 1550.

Tomando no sentido usual a palavra desterro, que significa figuradamente uma ausencia forçada ou prolongada, torna-se corre

1 Os amores de Camões e D. Catherina de Athayde, ambos nobres e jovens, não eram motivo para o afastamento abrupto do poeta da côrte; forçaram-o a sahir de Lisboa, temendo o perigo de um casamento a furto, como fizera o poeta do Crisfal com D. Maria Brandão. Eram frequentes estes casos no seculo XVI, e pelas Constituições do Arcebispado de Lisboa de 1537, eram válidos os casamentos a furto, sendo « ho homem de quatorze annos, e ha mulher de doze, e de menor edade nom.» (Tit. vIII, Const. 1.) Catherina de Athayde contava quinze annos quando Camões foi mandado sahir da côrte; seria a suspeita de um casamento a furto a nodoa feia que a inveja puzera em seu firme amor, como refere o poeta na Ecloga ? Era então em Camões muito viva a impressão do Crisfal, de que usava muitos versos como aphorismos.

lativa de homizio ou ausencia voluntaria diante de abruptos acontecimentos, como em. prega estes dois vocabulos Pedro de Mariz. Como a mãe do poeta era natural de Santarem, a tradição tendeu para localisar o retiro para esse logar; mas o poeta, demorou-se pelo Ribatejo, como se determina pelos seus versos, e pela tradição que o faz hospede de Dom Gonçalo Coutinho, seu amigo, na Quinta dos Vaqueiros, no Ribatejo, proxima de Santarem.

1

No preambulo descriptivo da Egloga II descreve Camões o seu refugio ou desterro no Ribatejo:

Ao longo do sereno

Tejo, suave e brando,

N'um valle de altas arvores sombrio,
Estava o triste Almeno,

Suspiros espalhando

Ao vento, e doces lagrimas ao rio.
No derradeiro fio

O tinha a esperança,

Que com doces enganos

Lhe sustentara a vida tantos annos,
N'uma amorosa e branda confiança;
Que quem tanto queria,
Parece que não erra se confia.

Do frio e doce Tejo
As aguas se tornaram
Ardentes e salgadas.

Depois que minhas lagrimas cansadas
Com seu puro licôr se misturaram ;
Como quando mistura

Hyppanis c'o Exampêo sua agua pura.

1 Allude a esta hospedagem, em um Epigramma latino, Manoel de Sousa Coutinho (Fr. Luiz de Sousa)

Sobre esta passagem escreve Juromenha, annotando: « Por estas e outras citações se vê que o Poeta escrevia esta composição nas margens do Tejo, onde elle se estreita e as aguas correm doces; á semelhança das lagrimas misturadas com o rio, como Hepanis e Exampêo, dá a entender que tinha presente o Zézere misturando-se com o Tejo» (Оb., III, p. 367.) Barreto Feio interpretando a Canção XIII, sustenta que andara pelas visinhanças do Zézere; porém esta composição pertence a Miguel Leitão de Andrade, que a esse tempo ainda não era nascido. Como lhe fallaria por estes sitios a lembrança do enamorado cantor do Crisfal! Ha na Ecloga III analoga situação no encontro dos dois amantes que se recriminam.

Frequentemente emprega Camões a comparação do touro para exprimir os impetos da valentia, como ao narrar a batalha de Ourique: Qual no côrro sanguineo o ledo amante, Vendo a formosa dama desejada,

O touro busca, e pondo-se diante.
Salta. corre. sibila, acena e brada;
Mas o animal atroce n'esse instante,
Com a fronte cornigera inclinada,
Bramando duro corre, e os olhos cerra,
Derriba, fere, mata e põe por terra.

(Lus., 1. st. 88.)

Sobre o emprego d'esta imagem, escreve o Dr. Balthazar Osorio, na Fauna dos Lusiadas: E assim ainda mais vezes, quando procura encarnar a ferocidade, é do animal mais bravo e vulgar do paiz e de que o Poeta tinha sem duvida mais conhecimento, que se lembra. No Canto VI, estancia 84, referindo-se á furia dos ventos insubmissos:

Assim dizendo, os ventos que luctavam
Como touros indomitos bramando,...

mais uma vez se recorda da féra cujos instinctos de certo observou no Ribatejo por occasião do seu desterro da côrte, ou com quem por ventura se defrontava com outros fidalgos seus amigos em Almeirim ou em Almada, quebrando lanças nas festas dos touros... » Na Carta I, compara-se aos touros da Merceana.

Pelas proximidades de Pedrogam, d'onde visitou o Convento dos Dominicanos, gastou Camões o tempo que destinava para restituir-se aos áres de Coimbra. Uma carta inedita, attribuida por Juromenha a Camões, (é a VII) poderia considerar-se como referida a esta situação: « Novas minhas estava para não escrever, porque não ousava confessar que temia deixar um estado por outro, que mais me enfadasse, pois n'esta parte me venciam dois receios: a hum, largar o que com tanto me enganei, outro, de não saber o como me haveria no que tinha provado; mas aqui entrou a rasão dizendo-me, que do que tinha me bastava o desengano e que para o que buscava me servisse o conselho qual estou resoluto de ir este anno a Coimbra, restituir-me aos áres em que me criei, parte do tempo que perdido tenho, e entretanto que eu mais de perto não posso córar estas opiniões com que ás duvidas respondo,...>

1 Juromenha, Obras de Camões, t v, p 243; encontrada com a Carta primeira da India em um Cancioneiro em que vinham muitas poesias authenticas de Camões. D. Carolina Michaelis considera-a segundo todas as probabilidades «obra de um Conde de Alcou

Esta circumstancia do intento de restituir-se aos áres de Coimbra, em que se criara, quadra plenamente com a situação do Poeta, divagando sem destino pelo Ribatejo. O facto do falecimento de seu tio Dom Bento de Camões em 2 de Janeiro de 1547, veiu atalhar esta resolução plausivel e pacificadora; e aggravando mais a sua amargura, determinaria como que um acto de desespêro suggerindo-lhe a partida para a estação militar de Ceuta. Todas estas circumstancias se systematisam dando relêvo áquella explosão sentimental da Ecloga 1:

Por que primeiro a vida acabará,

Que se acabe tão áspero degredo.

Não era com certeza uma paixão amorosa, entre os dois namorados jovens e fidalgos, na côrte de D. João III, onde eram frequentes esses casos, que levantaria diante de Camões tantas contrariedades e malevolencia até o tornarem incompativel com o Paço, vendo-se forçado a ausentar-se de Lisboa. O proprio poeta reconhece mais algumas causas além do amor; no Soneto CXCIII indica-as sem as pormenorisar:

Erros meus, má fortuna, Amor ardente,
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e à Fortuna sobejaram,
Que para mi bastava Amor sómente.

tim, e a resposta de um A. de M.» (Storck, Vida de Camões, p. 391) E' frequente entre os copistas curiosos attribuirem a si ou firmarem com o seu nome os ver. sos ou prosas que trasladam; conhece este phenomeno quem manusêa manuscriptos.

« VorigeDoorgaan »