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pois nos gastaran papel.
Fôra melhor do ouropel
meu coraçam

esta vossa envençam.

(Conc. ger. t. 1, p. 137.)

A avó do poeta, D. Margarida Freire, apparece como dama muito festejada no Cancioneiro de Resende, pelos principaes poetas da côrte de D. Manoel, taes como João da Silveira, Luiz da Silveira, Jorge da Silveira, D. Lourenço de Almeida, Conde de Alcoutim, Fernão Telles, Conde de Vimioso, Conde de Faram, D. Francisco de Biveiros, D. João Lobo, Diogo de Mello, Jorge de Mello e outros muitos. (Canc. ger., III, 43.) Como João Lopes Leitão teria na familia quem lhe recordasse os afamados Serões da côrte de D. Manoel, e quem lhe suscitasse n'alma o sentimento da poesia e o espirito de galanteio. Entrou muito creança para o serviço do paço, sendo escolhido para pagem da lança do Princepe Dom João, filho unico de D. João III; Camões exalta a indole poetica do que foi o primeiro a louval-o:

De tão divino accento em voz humana.

De elegancias que são tão peregrinas,
Sei bem que minhas obras não são dinas;
Que o rudo engenho meu me desengana.

Porém, da vossa penna illustre mana

Licor que vence as aguas cabalinas,
E comvosco, do Tejo as flores finas
Farão inveja á copla mantuana.

E pois a vós de si não sendo avaras,
As filhas de Mnemósine formosas
Partes dadas vos tem ao mundo claras.

A minha musa e a vossa tão famosa,
Ambas se podem n'elle chamar raras,
A vosa de alta, a minha de invejosa.
(Sonet. LXII.)

João Lopes Leitão pertence a essa segunda geração dos Fieis de Amor, que succedeu a Bernardim Ribeiro e a Christovam Falcão; reconhecia o genio de Camões e acompanhava-o nas intrigas amorosas da côrte. Vem nas Redondilhas de Camões um Mote e Volta A João Lopes Leitão, sobre uma peça de cacha que deu a uma dama que se lhe fazia donzella:

MOTE:

Se vossa dama vos dá
Tudo quanto vós quizestes,
Dizei-me: P'ra que lhe destes
O que vos ella fez já ?

VOLTA:

Sendo os rostos envidados,
E vós de cachas mil contos
Sabeis com quam poucos pontos
Que lhes achastes quebrados;
Se o que tem que vos dá,
Vós mui bem lh'o merecestes,
Por que se a cacha lhe destes,
Tinha-vol-a feito já.

(Ob., t. iv, 49.)

1 Basta o agradecimento de Camões pelas mesmas consoantes, exaltando o auctor do Soneto Quem é este que na Harpa lusitana - para se reconhecer que não era dirigido a um desconhecido. Francisco Gomes de Azevedo, encontrou-o em um manuscripto. E como poderia um ignorado sujeito conhecer tão intimamente Camões e fazer-lhe a glorificação convicta e fervorosa? N'estas attribuições Faria e Sousa teve melhores fundamentos que o Dr. Storck.

Pelas suas importantes relações de familia, João Lopes Leitão regressa brevemente á côrte já perdoado dos atrevidos galanteios, estimado pelo princepe D. João, pelo seu talento poetico; seu irmão Pedro Leitão, pagem do Livro em casa do Infante D. Duarte, era tambem poeta, figurando no certâme do Receio de louvor a D. Margarida da Silva. 1 Dirigiu-lhe da India uma carta João Lopes Leitão, a qual se guarda na bibliotheca da Ajuda. Segundo os Nobiliarios manuscriptos, este amigo de Camões, que o foi encontrar na India e assistiu ao Banquete de Trovas, não casou, e d'elle ficara uma filha natural chamada D. Violante Leitão, que se metteu freira em Odivellas. Um outro seu irmão foi frade dominico, Fr. Estevam Leitão, que seguiu o partido do Prior do Crato.

.

Para Camões não se abrandaram os rigores, e augmentaram as malevolencias pela impunidade da distancia. Elle mesmo se queixa d'esta covardia: << Então ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pele a virtude de Achilles, que não podia ser cortada se não pela sola dos pés; as quaes de m'as não verem nunca, me fez vêr as de muitos, e não engeitar conversações de menor impressão, a quem fracos punham máo nome, vingando com a lingua o que não podiam com o braço. >> Este máo nome era a alcunha de Trinca Fortes, revelado pelo epigramma do Chiado;

1

Poesias ineditas de P. de Andrade Caminha, p. 288. Ed. Priebsch.

Juromenha, Obr., t. II, p. 432.

como se vê por esta Carta primeira dirigida da India, Camões andava então envolvido nas praxes fidalgas da Valentia, e pode-se consideral-a tambem um dos seus erros, a que no Soneto allude. Na Elegia II tratando do seu amor, escapava-lhe a nota da Valentia que o dominava:

Amor não será amor, se não vier

Com doudices, deshonras, dissenções,
Pazes, guerras, prazer e desprazer;

Perigos, linguas más, murmurações,
Ciumes, arruidos, competencias,

Temores, nôjos, mortes, perdições.

A praxe da Valentia foi uma pandemia da sociedade do seculo XVI, sendo em Camões uma das causas que o afastaram da côrte. Acha-se uma precisa descripção d'esta monomania na novella picaresca de Vicente Espinel, Vida del Escudero Marcos de Obregon: << entre muchas cosas que me succedieron fué una dar en Valentia; que havia entonces, y aun créo que ahora hay, una especie de gente, que ni parecen cristianos, ni moros, ni gentiles; sinó su religion es adoraren la diosa Valentia, por que les parece que estando en esta confradia, los tendran y respetaran por valientes, no curando á serlo, si no á parecelo:> (p. 189.) Fallando de si, o poeta hespanhol Vicente Espinel descreve perfeitamente os perigos da mocidade portugueza: «Pùseme espada y en las obligaciones en que se pone quien la ciñe, que con el desvanecimiento de la Valentia y con el haber dado en poeta y musico, que qualquiere de las tres bastaba para deribar otro juicio mejor que el mio, co

mencé á alear mas de lo que me estaba y a tenerme por paseante, de manera que no habia portuguez mas azucarado que yo... » Esta comparação final, e as feições do valente do seculo XVI esboçadas por Espinel, dão-nos a comprehensão d'esta phase do caracter de Camões, que reapparecendo em muitas situações da sua vida, explicam uma das causas do afastamento da côrte. Este costume da Valentia, que foi idealisado em Novellas picarescas e Comedias famosas hespanholas, conservou-se no seculo XVII em Portugal, como se vê pelo encontro nocturno de D. Francisco Manoel de Mello e D. João IV, e tambem na morte de Pedro Severim de Noronha, filho d'aquelle que mandou gravar o primeiro retrato de Camões, assassinado uma noite na Tanoaria pelos mulatos de D. Affonso VI. No seculo XVIII a fidalguia da côrte ainda conservava a praxe da Valentia, apontando-se Sebastião José de Carvalho (depois Marquez de Pombal) afamado n'essas vacações nocturnas. No prologo do Auto de El rei Seleuco allude Camões ao costume caracteristico: << Ora vieram uns Embuçadotes, e quizeram entrar por força; eil-o arrancamento na mão; deram uma pedrada... » Os Côrros ou Pateos das Comedias, em que lhe representam os Autos e os arranques da Valentia, elle bem cêdo os considerou como os erros que vieram aggravar-lhe a corrente que o impellia para a desgraça.

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1 E' destituido de verdade o retrato que Anthero do Quental fez de Camões, considerando romanticas as suas desventuras: A bem considerar, Camões foi an

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