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Depois dos seus erros ou delictos da mocidade, como lhes chamaria Camillo, apontou Camões a má Fortuna conjurando-se com o Amor ardente, para a sua perdição. Embora vaga e indefinida, a phrase má Fortuna exprime uma realidade; successos extranhos á vontade e de que elle não tinha a minima responsabilidade actuaram na sua existencia embaraçando as legitimas aspirações do talento. Não faltaria na côrte quem recordasse a Dom João III, que o imaginoso e apaixonado poeta era sobrinho de Dom Bento de Camões, com quem o rei tivera varios conflictos: primeiramente, a posse do thesouro achado em 14 de Agosto de 1539 pelo collegial do Collegio de Todos os Santos Aleixo de Figueiredo, debaixo das escadas que iam para a torre do Mosteiro de Santa Cruz; queria Dom Bento de Camões, então Prior geral, que o thesouro pertencesse ao Mosteiro, e o monarcha pretendia-o pelo seu direito magestatico. N'este conflicto foi dada sentença a favor de D. João III. Passado este caso, em que D. Bento de Camões pugnava a favor da sua Ordem, surgiu em 1540 outro conflicto com o rei; as grossas rendas do Priorado mór de Santa Cruz, que eram recebidas pelo Infante D. Duarte, vagaram por sua morte, e entendeu o Prior Geral que ellas regressavam ao Mosteiro; Dom João III quiz

tes um homem feliz, do que um desgraçado. A felicidade burgueza e pacifica não lhe convinha; teve a vida de aventuras e de fortes emoções que quadravam ao seu genio, e que todo o verdadeiro poeta preferirá sempre, do que estou persuadido, a qualquer felicidade calma e monotona.» (Circulo, p. 171.)

dar essas rendas ao seu bastardo, filho de D. Isabel Moniz, Dom Duarte, que mandara crear no convento da Costa, fazendo-o na mais tenra edade Prior-mór de Santa Cruz de Coimbra, com dezoito annos apenas. O rei appelou para a Curia romana, e o papa Paulo III em 1541, mandou deferir as rendas ao monarcha para a nomeação do seu bastardo, que veiu a morrer em Lisboa em 1543 antes de ser sagrado arcebispo de Braga. Além d'isto, durante o triennio em que D. Bento de Camões exerceu o cargo de Cancellario da Universidade, andou sempre em conflictos de jurisdicção com o Reitor da Universidade, o Bispo de San Thomé, que como dominicano professava grande antipathia contra quem era augustiniano. O reformador Frei Braz de Barros escrevia por vezes ao monarcha, esclarecendo e attenuando estas birras, em que a rasão estava sempre do lado de Dom Bento de Camões. Todas estas lembranças do primeiro Cancellario da Universidade, austero de costumes e fechado na pureza do seu ascetismo, eram fracas recommendações para o poeta medrar na côrte; Camões o reconhecera bem ao alludir á sua má fortuna.

Educado na corrente humanista franceza, que tanto fizera florescer as Escholas de Santa Cruz de Coimbra, esse brilhantismo era agora offuscado pelo predominio dos Jesuitas no animo de D. João III, que trataram de monopolisar o Ensino médio. A eschola de André de Resende foi mandada fechar; e o espirito d'esta transformação brusca, resumia-se na phrase de Dom João ш em relação aos escholares,- que os queria mais catholi

cos e menos latinos. Ia imperar o pezado e estupidecente methodo alvaristico, e apagar se toda a elegancia dos bons classicos e o doce culto da Antiguidade. Não era esta crise pedagogica e litteraria uma má fortuna para Camões, creado em uma mais saudavel e franca atmosphera de mentalidade, em que o pensamento e a imaginação se fortificavam penetrando o espirito da Antiguidade classica?

Mas esta crise ainda se tornou mais grave, quando em 1545 tratou Dom João ш de nomear um sabio humanista para dirigir a educação litteraria do esperançoso princepe Dom João. Lembrou-se o monarcha de chamar para Portugal o portentoso Damião de Goes, afamado entre os grandes humanistas da Europa, e confiar-lhe a educação do princepe. Era realmente uma ventura o ter nascido em tempo que se podia receber lições de Damião de Goes; elle por ordem do rei regressou á patria com toda a sua familia. Logo que o jesuita P. Simão Rodrigues soube da intenção do rei, fez uma accusação secreta á Inquisição de Evora, em 5 de Septembro de 1545, denunciando que Damião de Goes vivera na intimidade de Erasmo, que conversara com Luthero, e era amigo de Melanchton. E como habil jesuita, levou Dom João III a faltar ao compromisso do convite a Damião de Goes, fazendo-o preferir para mestre do princepe D. João o Dr. Antonio Pinheiro, que em Paris fôra celebrado professor de Rhetorica.

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1 Historia da Universidade de Coimbra, t. I, p.

A accusação secreta feita pelo P.e Simão Rodrigues surtiu o seu terrivel effeito em tempo conveniente, sendo Damião de Goes arrastado ao carcere inquisitorial; e o Dr. Antonio Pinheiro, cooperando no plano jesuitico, foi nomeado Bispo de Leiria e tornou-se decidido partidario de Philippe . Em roda do princepe D. João agruparam-se poetas e fidalgos que mais se conformassem com a monita do P. Simão Rodrigues. Para attenuar as admirações que o genio de Camões provocava, suscitaram no princepe o enthusiasmo pelo velho Sá de Miranda, philosophicamente refugiado na sua quinta da Tapada no alto Minho. A tradição da hostilidade de Sá de Miranda contra Camões não tem outro sentido se não o intuito dos que dirigiam os enthusiasmos ingenuos do princepe D. João. E como se esta má fortuna ainda não bastasse, como diz o poeta no seu nitidissimo Soneto, para castigar as suas mal fundadas esperanças, veiu com os breves enganos um ardente amor tornar irremissivel a sua perdição.

Na Canção XI, incomparavel expressão do sentimento humano, e de um extraordinario valor autobiographico, descreve Camões a paixão exclusiva que lhe enche a vida. E' a historia do seu amor relacionado com todos os accidentes, soffrimentos e desastres que constituiram a trama da sua existencia. A Canção XI é uma admiravel synthese, em que

1 O poeta Philippe de Aguilar, que mandava versos a Sá de Miranda, era filho de Francisco Velasques de Aguilar, trinchante mór do princepe D. João; e por sua mãe primo de D. Catherina de Athayde.

define todos os transes porque passou até ao refugio das suas recordações.

Descreve o temperamento amoroso, revelado desde o berço pela exquisita sensibilidade que lhe causavam as cantigas tristes com que era adormecido. Essa precocidade preparava-o para a impressão decisiva da imagem real, que tantas vezes entrevira em sonhos:

De quem eu vi depois o original,
Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.

E diante d'aquella fórma humana, que scintilava espiritos divinos, passam-se as rapidas crises dos desdens, das enganosas esperanças, da incerteza, e de sentir-se comprehendido, mas invejado, envolvido em perseguições odiosas:

Que genero tão novo de tormento

Teve Amor, sem que fosse tão sómente
Provado em mi, mas todo executado!
Implacaveis durezas, que ao fervente
Desejo, que dá força ao pensamento
Tinham de seu proposito abalado,

Aqui sombras phantasticas trazidas
De algumas temerarias esperanças...
Mas a dôr do desprezo recebido
Que todo o phantasiar desatinava,
Estes enganos punha em desconcerto.
Aqui o adivinhar, e ter por certo
Que era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-me de corrido;
Dar ás cousas que viu outro sentido;

E depois que um doce e piedoso mover de olhos, um gesto puro e trasparente o encontraram, e

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