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N'outro sêr me tiveram transformado,
E tão contente de me vêr trocado,

Que as magoas enganava co'os enganos

Deu-se a fatalidade da separação brusca, relegado da côrte para não mais vêl-a. Camões descreve esta situação, que vae determinar inteiramente o plano da sua vida, cada vez mais tormentosa e desesperada:

Pois quem póde pintar a vida ausente
Com um descontentar-me quanto via,
E aquelle estar tão longe d'onde estava;
O fallar sem saber o que dizia;

Andar sem vêr por onde; e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?

Agora co'o furor da magoa irado,
Querer e não querer deixar de amar;
E mudar n'outra parte, por vingança
O desejo privado de esperança,
Que tão mal se podia já mudar?

Este curso contíno de tristeza,
Estes passos vanmente derramados,
Me foram apagando o ardente gosto
Que tão de siso na alma tinha posto.

N'este prolongado e amarissimo tormento, Camões vê-se forçado a deixar a patria, ir para muito longe para se esquecer de tudo e de si mesmo. Elle descreve este passo desesperado:

D'esta arte a vida em outra fui trocando;
Eu não, mas o destino feio, irado;

Que eu, inda assi, por outra a não trocara.
Fez-me deixar o patrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes me esteve a vida cara.

Agora exp'rimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse, e tocasse o acerbo fructo seu,
E n'este escudo meu

A pintura verão do infesto fogo.

N'estes versos resume o poeta a sua partida para Ceuta, o tempo que ahi serviu militarmente e como foi ferido, perdendo o olho direito. Na Canção XI, escripta nos ultimos annos de Camões, este facto é uma recordação que se encadêa na série das suas calamidades; aqui é um ponto de partida que nos leva a acompanhal-o das digressões pelo Ribatejo para o norte de Africa. Que motivos levariam Camões, como homem culto destinado á actividade mental, á vida artistica e especulativa, a arrojar-se a um clima inhospito, ao ruido da guarnição militar aborrecida, sequestrado a todos os interesse do espirito?

Não foi por certo uma aventura, mas um pensamento que o impellia á importante resolução. Esse pensamento apparece expresso em muitas das suas composições lyricas e é proclamado nos Lusiadas. E' o Imperio africano. Todo o homem culto do seculo XVI conhecia a importancia da queda de Constantinopla sob o poder dos Turcos, e as tremendas consequencias do desenvolvimento maritimo dos Osmanlis no Mediterraneo e estabelecimento dos Estados berberescos no norte da Africa, perturbando pela pirataria todas as nações occidentaes, como a Italia, a Hespanha e Portugal.

Áo terminar os seus estudos, em 1542, Camões viu n'esse anno Dom João III Commetter o deploravel erro governativo de abando

nar Safim e Azamor. Os deslumbramentos da côrte e a sua tenra edade fizeram-lhe esquecer esse symptoma de decadencia. Agora no meio dos seus intimos desalentos, um facto importante veiu revelar-lhe quanto digno seria gastar o viço da mocidade indo combater contra os mouros. Em 1547 succedeu o famoso cerco de Mazagão, tão celebrado pelos poetas contemporaneos, como Jorge Ferreira de Vasconcellos na comedia Ulyssipo, e por Chiado na Pratica de outo figuras, em que se reflecte a forte impressão causada por este acontecimento no animo publico:

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Não parece,

Dizem que em Marrocos jaz.

GAMA: Senhor, como nos acodes
á maior tribulação.

LOPO: Sabeis já de Mazagão,

Que é outro segundo Rhodes?

GAMA: Tendes infinda rasão;
a Fortaleza

está sobre uma penedia,

que não pode ser minada,
LOPO: Dizem-mé que está cercada.
GAMA: Si; da banda da enxovia,
Que do mar não é feito nada.
LOPO: Porém tudo hade ter fim,
Não ha quem viva quieto;
ho milhor he ser discreto
e assentai que passa assi.

(FL. 3 x)

Este successo suggeriu a Camões o trocar o desterro infructuoso do Ribatejo pela vida de acção nos recontros de Africa, cumprindo

assim a pragmatica exigida, dirigindo-se para Ceuta, a principal conquista portugueza, onde se faziam appréstos para a resistencia. Pela confissão de D. Catherina de Athayde (de Sousa) a Frei João do Rosario, tempos antes da sua morte em 1551, perguntada sobre a causa do destêrro de Camões, se fôra por amores, respondeu: « que assim não era; e que fôra aquella alma grande, que para emprezas grandes e a regiões tão apartadas o levara.»

Como saberia esta dama, vivendo casada na provincia desde 1543, que o admirado poeta sahira de Portugal para regiões apartadas, levado pela sua alma sublime para emprezas grandes? Basta considerar, que sua mãe D. Philippa de Athayde, era camareiramór da rainha D. Catherina, e seu pae D. Alvaro de Sousa era Védor da Casa da Rainha; elles a informariam das noticias e pequenos interesses da côrte. O que seriam estas emprezas grandes? O poeta já elaborava mentalmente o Canto heroico da historia portugueza; esse ideal o fez comprehender a importancia politica do Imperio africano, inicio da grandeza de Portugal. O acontecimento de 1547 veiu dar relêvo ao seu pensamento, pela importancia que o dominio do norte de Africa exercia sobre a politica e a segurança da Europa.

Vejamos em breve summula o problema africano no seculo XVI, para bem comprehender o pensamento de Camões, que o inspirou com tanta sinceridade, e do qual D. Sebastião mais impulsivo do que intelligente converteu em uma estupenda catastrophe. O Mediterraneo estava dominado por tres povos que ahi

exerciam a sua actividade; os Osmanlis, os Italianos e Hespanhoes, que pela sua desunião deixavam engrandecer o perigo turco. Os Osmanlis tinham-se apoderado da Hungria, e eram servidos na guerra pelos Tartaros, a cuja raça pertenciam; sustentavam uma incessante lucta contra os outros dois povos que mal se ligavam para combatel-os. Venceram os Hespanhoes nas costas de Africa e os Italianos nas costas da Grecia; ameaçaram Oran, atacaram com todas as suas forças Malta, conquistaram Chypre, infestando pela pirataria as costas italianas e hespanholas. Era a perspectiva da antiga invasão dos Arabes feita agora pelos Turcos, que os substituiam; era urgente destruil-os para mantêr a acção livre d'estes povos no Mediterraneo, e isto sómente por uma colligação pelo influxo da religião catholica e pelos interesses politicos. Desde a tomada de Chypre em 1538 por Barbaroxa, que atacou e venceu a armada christã junto a Prevesa, os Turcos ficaram senhores do Mediterraneo até 1571, em que a victoria de Lepanto por D. João de Austria, lhes destruiu a sua preponderancia.

E' n'este longo periodo de 1538 a 1571, em que os Turcos estabelecendo-se nas costas africanas, tornam o Imperio africano o problema vital para as nações catholicas occiden. taes. As luctas do imperialismo, em que Carlos v, Francisco I e Henrique VIII sacrificam as energias da Europa aos seus egoismos, tornam mais terrivel o problema africano, por que os Turcos já não encontram uma resistencia decisiva. A lucta dos dois povos contra os Osmanlis, como observa Ranke, im

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