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primiu-lhes um caracter mixto de altivez e de solercia, de presumpção e de engenhosa curiosidade, de cavalleria romantica e de politica artificiosa, de crença nos astros e de mysticismo cheio de abnegação.» Como homem culto e valoroso Camões comprehendia este problema, vendo a antithese portugueza:

uma epoca inicia-se o Imperio africano pela tomada de Ceuta em 1415, de Alcacer Ceguer em 1458, de Arzilla e Tanger em 1471, de Anafé em 1468, derrota do Princepe de Fez e Maquinés sob D. Manoel, tomada de Safim em 1508, de Azamor em 1513, de Amagor em 1515; em outra epoca, sob D. João III começa o desmoronamento d'esse Imperio, pelo abandono da fortaleza de Cabo de Aguer em 1536, e depois da tomada de Chypre, em que começa o Imperio de Barbaroxa no Mediterraneo, são em 1542 abandonadas por ordem regia Safim e Azamor. A defeza heroica do Cêrco de Mazagão vinha acordar na alma do poeta o ideal africano, que tinha de soffrer em 1549 uma terrivel decepção, quando D. João III mandou estupidamente abandonar Arzilla e Alcacer Ceguer, ficando o Imperio de Africa reduzido a Ceuta, Tanger e Tetuão. A ideia do heroismo em Africa era substituida pelo espirito de ganancia na India.

No admiravel episodio do Velho de Restello, em que se appresenta Camões como um sublime symbolista, propõe no momento do

1 Hist. dos Osmanlis.

deslumbramento da aventura indiana, o problema concreto africano:

Não tens junto comtigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue elle do Arabio a lei maldita,
Se tu pela de Christo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é elle por armas esforçado,
Se queres por victorias ser louvado?

Deixas crescer ás portas o inimigo
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovôe o reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incognito perigo,
Porque a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te Senhor, com larga copia,
Da India, Persia, Arabia e da Ethiopia!

(Lus., IV, 100-1)

E fallando de D. João I, exalta-o pela lucida iniciativa da acção guerreira:

Este é o primeiro rei que se desterra
Da patria, por fazer que o Africano
Conheça pelas armas quanto excede
A Lei de Christo á Lei de Mafamede.

(Id. ib., est 48.)

Na Egloga 1, em que celebra a morte do seu joven amigo D. Antonio de Noronha, em Africa, ao alludir ao nascimento de D. Sebastião, vaticina:

que a ser conservado do Destino, As benignas estrellas promettendo Lhe estão o largo pasto de Ampelusa

Co'o Monte que em máo ponto viu Medusa.

Tinha o poeta a comprehensão clara do problema, a que Dom Sebastião desde 1574

a 1578 deu a fórma de uma missão mystica de um Cavalleiro celeste. A partida de Camões para a Africa não foi uma aventura de poeta, mas o impulso de um pensamento que lhe fizera comprehender a grande empreza.

Deliberado a partir para a Africa, dirigiu-se Camões a Lisboa para seguir em qualquer não do estado; 1 conhecida a resolução desesperada, alguns amigos intervieram, e parece que a familia de Catherina de Athayde já se mostrava complacente. No Soneto CXLI esboça-se esta situação:

Na desesperação já repousava

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O peito longamente magoado,

E com seu damno eterno concertado

Já não temia, ja não desejava.

Quando uma sombra vã me assegurava

Que algum bem me podia estar guardado
Em tão formosa imagem, que o traslado
N'alma ficou, que n'ella se enlevava.

Que credito que dá tão facilmente
O coração áquillo que deseja,

Quando lhe esquece o féro seu destino!

Ah! deixem-me enganar, que eu sou contente;
Pois postoque maior meu damno seja,
Fica-me a gloria já do que imagino.

Apesar de deslumbrarem o poeta aquellas inesperadas esperanças, elle reconheceu que

1 Na segunda Vida de Camões, refere Faria e Sousa a tradição, que o poeta voltou de Santarem á côrte, e que por ter reatado os seus amores lhe fôra infligido um segundo destêrro para Ceuta. Storck borda outra hypothese: a commutação da pena do destêrro no Ribatejo, por dois annos de serviço militar em Ceuta.

a edade lhe impunha um systema de vida, uma situação social; e partiu para Ceuta, referindo-se a esta viagem o Soneto CXXXIX:

Por cima d'estas aguas forte e firme
Irei aonde os Fados o ordenaram,
Pois por cima de quantas derramaram
Aquelles claros olhos pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me;
Já mil impedimentos se acabaram,
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.
Passei-os eu com animo obstinado,
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido já desesperado.

Em qual figura ou gésto desusado,
Pode já fazer medo a morte irosa

A quem tem a seus pés rendido e atado?

Era Catherina de Athayde que lhe pedia para ficar em Lisboa; os grandes desgostos tornaram o animo obstinado para aquelle passo, e partiu. Por certo que esta situação descripta n'estes dois Sonetos é muito differente d'aquelle estado de espirito com que partiu annos depois para a India tendo enforcado todas as suas esperanças. Camões descreve com suave magoa a partida para Ceuta, em umas deliciosas Voltas:

Partir não me atrevo,

Que me lembram magoas;
Se me levam aguas,

Nos olhos as levo.

Se vou ao Tejo

Pera me partir,
Nam me posso ir
Sem vêr meu desejo,

E quando o vêjo,
Partir não me atrevo;
Se me levam aguas
Nos olhos as levo.

Se de saudade
Morrerei ou não,
Meus olhos dirão
De mi a verdade.
Por elles me atrevo
A lançar ás aguas,
Que mostrem as magoas
Que n'esta alma levo.

As aguas que em vão
Me fazem chorar,
Se ellas são do mar,
Estas de amor são.
Por ellas relevo

Todas minhas magoas;
Que se força de aguas
Me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,
Todas são salgadas;
Porém as choradas

Doces me parecem.

Correi, doces aguas,

Que se em vós me enlévo,
Não dóem as maguas
Que no peito levo. 1

Dera-se uma acalmação na alma do poeta, sabendo que ainda era amado. A viagem para Ceuta, como se verifica pela marcha de algumas frótas, durava geralmente dez dias; e quando as calmarias pezavam, as frotas apor

1 No Cancioneiro de Evora, publicado por Hardung, p. 30, vem a primeira estrophe, que completa o texto colligido dos manuscriptos de Faria e Sousa por Juromenha, Obr., iv, 121.

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