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De furibundas ondas poderoso,

Na terra, a seu pesar, está tomando
Logar, em que se estenda, cavernoso.

A todas estas cousas tenho inveja
Tamanha, que não sei determinar-me,
Por mais determinado que me veja.

Se quero em tanto mal desesperar-me
Não posso, porque Amor e saudade
Nem licença me dão para matar-me.

Camões tinha encontrado n'aquellas paragens um amigo, com quem podia desabafar, dar largas á explosão do sentimento em que se absorvia :

Senhor, se vos espanta o soffrimento

Que tenho em tanto mal, para escrevel-o
Furto este breve espaço ao meu tormento.
Porque, quem tem poder para soffrel-o,
Sem acabar a vida co'o cuidado,
Tambem terá poder para dizel-o.

Nem eu escrevo um mal já acostumado;
Mas n'alma minha triste e saudosa
A saudade escreve e eu traslado.

Quem era este senhor, a quem Camões escrevia com a intimidade de lhe confessar os seus soffrimentos, como a um confidente e amigo? Esta Elegia II, na lição manuscripta do Cancioneiro de Luiz Franco, tem a rubrica De Ceita, a um amigo; e na edição das Rimas de 1595, em que se acham as lyricas mais authenticas de Camões, vem com a rubrica A Dom Antonio de Noronha, estando na India. Estas rubricas completam-se, evidenciando o erro, de que escrevendo Ca

1

mões de Ceuta, não estava n'este periodo na India D. Antonio de Noronha. Por um documento historico corrige-se o facto deturpado no texto de Soropita; nos manuscriptos do Conde de S. Lourenço acha-se um Regimento para D. Antonio de Noronha ir á cidade de Aden, datado de 1548. 1 Juromenha reconheceu a deturpação do copista, dizendo: «E' este um dos muitos erros com que andavam os manuscriptos d'onde Fernão Rodrigues Lobo Soropita copiou e com o seu escrupulo conservou. (Obr., III, 456.) O traslado da Elegia II corrige-se pelo Regimento de 1548, substituindo estando na India por estando em Aden. Acclara-se a situação historica dos dois amigos; Camões escrevia a D. Antonio de Noronha para Aden:

Já deve de bastar o que aqui digo,
Para dar a entender o mais que calo,
A quem viu já tão aspero perigo.

E se nos brandos peitos faz abalo
Um peito magoado e descontente,
Que obriga a quem o ouve a consolal-o;
Não quero mais se não que largamente,

Senhor, me mandeis novas d'essa terra,
Que alguma d'ellas me fará contente.

Quem era D. Antonio de Noronha? Era o valoroso sobrinho do Capitão de Ceuta D. Affonso de Noronha, tambem poeta. Na

1 Mss. comprados para o Estado, e catalogados por José Maria Antonio Nogueira. (Na Torre de Tombo).

8 A Capitania de Ceuta andava na Casa de Villa Real e de Linhares; o filho do 1.o Marquez de Villa Real, D. Antonio de Noronha, 1.o Conde de Linhares,

clamorosa decadencia das conquistas de Africa, estes dois cavalleiros conservavam as tradições e os sentimentos generosos dos fronteiros de outr'ora, como D. Pedro de Menezes,

foi Capitão de Ceuta; e seu irmão D. João de Noronha, Prior de S. Cruz de Coimbra, foi Bispo de Ceuta.

Seguiram-se n'esta Capitania, D. Pedro de Menezes, filho do 2.o Marquez de Villa Real, que casara com D. Brites de Lara, a amada prima de D. João 111; e D. Affonso de Noronha, que serviu por seu irmão D. Pedro desde 1548 a 1549, sendo n'este anno chamado para partir como Vice-Rei na Armada de 1550. D. João de Noronha, irmão d'estes dois, falecido em 16 de Agosto de 1524 e tendo casado clandestinamente, houve depois de viuvo um filho natural, D. Antão de Noronha, que acompanhou para India seu tio Vice-Rei. E' este o amigo intimo de Camões. A celebre dama erudita D. Leonor de Noronha, grande latinista e que traduziu para portuguez as Eneadas de Sabellico, era irmã d'estes tres fidalgos.

-Do 1.o Conde de Linhares D. Antonio de Noronha, foi primogenito D. Francisco de Noronha, 2.° Conde de Linhares, casado com D. Violante de Andrade, de quem foi filho D. Antonio de Noronha, a criança gentil escolhida para justar com o Princepe D. João no Torneio de Xabregas; morreu com seu tio D. Pedro de Menezes no desastre de Ceuta em Abril de 1553. Foi intimo amigo de Camões, que celebrou a sua morte prematura em uma Egloga e Soneto, tendo-lhe dedicado a sua Elegia 11.

Vê-se que tanto na côrte, como na guarnição de Ceuta teve Camões relações intimas com a poderosa e nobilissima familia dos Noronhas do ramo Villa Real e do de Linhares.

Ha outros homonymos, como D. Antonio de Noronha, filho do Vice-rei D. Garcia de Noronha, que foi Capitão de Malaca, onde faleceu em 1568; e D. Antonio de Noronha, de alcunha o Catarraz, filho de D. Martinho de Noronha. que foi Capitão de Diu em 1556, e serviu com o Vice-rei D. Constantino de Bragança. A estes não se acham referencias em Camões.

D. João Coutinho, os aguerridos João Falcão ou Gomes Freire, sendo o ultimo d'esta geração sublime o afamado poeta palaciano D. João de Menezes. Camões ainda lhes cele brava os ditos memoraveis de valentia, como o de D. Pedro de Menezes, primeiro fronteiro de Ceuta:

Emquanto do seguro azambujeiro

Nos pastores de Luso houver cajados,
Com o valor antiguo, que primeiro
Os fez no mundo tão assignalados,
Não temas tu, Frondelio companheiro,
Que em algum tempo sejam subjugados;
Nem que a cerviz indomita obedeça

A outro jugo qualquer que se lhe off'reça.
(Eglog. 1)

Com estes dois vultos historicos é que serviu Camões em Ceuta; em fim de 1547, Dom Antão (ou Antonio) de Noronha substi tuiu até Julho de 1548 seu tio D. Affonso de Noronha na Capitania de Ceuta. Foi n'este periodo que se estabeleceu a intimidade do poeta, e que interessou o seu valente amigo pelos soffrimentos de um naufrago da vida. Tendo partido para Aden em 1548 D. Antonio de Noronha, para alli lhe enviou a Elegia de Ceita, a um amigo, (Ms. Luiz Franco) talvez já no anno de 1549.

E' áquelle generoso amigo que são dirigidas as Outavas I que se intitulam Desconcerto do mundo, de um espirito que se apoia em firmes concepções philosophicas. Nas rubricas das Outavas I dá-se o mesmo caso que na Elegia II; em uma lição acha-se: Epistola de Camões a um amigo; e em outro texto: A D. Antonio de Noronha, sobre o descon

certo do mundo. O caracter d'esta composi ção, tão repassada de conformidade philosophica, põe em evidencia, que não poderia ser dirigida áquelle joven filho do 2. Conde de Linhares, D. Antonio de Noronha, que pouco mais teria de doze annos. 1 1

E' ainda ao heroico capitão de Africa, que dirigia Camões a Ode XIII, colligida dos ineditos de Luiz Franco; n'ella, já escripta na India, ainda se recorda Camões dos seus valentes feitos em Africa:

A vós, cuja alta fama

Vi entre os Garamantas conhecida,
A' luz que o sol derrama

Na terra enobrecida

Por vós, já tão de todo escurecida. ❜

Por aqui se vê, que o bravo D. Antão de Noronha era tambem Poeta; e justifica-se por que motivo lhe dirigia as suas mais delicadas composições:

Não é de confiado

Mostrar-vos minhas cousas, pois conheço
Que tendes alcançado

N'isto o mais alto preço,

E quanto em mostral-as desmereço.

1 O Dr. Storck adopta em absoluto este personagem, para dar corpo á sua hypothese phantasista, de ter sido Camões pedagogo de D. Antonio de Noronha, empregado em casa do Conde de Linhares.

No texto manuscripto do Canto 1 dos Lusiadas, no Cancioneiro de Luiz Franco, vem uma estrophe, que tambem apparece no 1.° Manuscripto dos seis Cantos achado por Faria e Sousa, em que se lê:

Já deixa á mão direita os Garamantes
E os desertos de Lybia circumstantes.

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