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Nas Outavas I a Dom Antonio de Noronha, seu companheiro na estação de Africa, descrevendo-lhe Camões os desconcertos do mundo, falla com enthusiasmo da vida intellectual, que era o seu sonho de felicidade:

Mas, se o sereno céo me concedera
Qualquer quieto, humilde e doce estado,
Onde com minhas Musas só vivera,
Sem vér-me em terra alheia degradado;
E alli outrem ninguem me conhecera,
Nem eu conhecera outrem mais honrado
Se não a vós, tambem como eu contente,
Que bem sei que o serieis facilmente:

E ao longo de huma clara e pura fonte,
Que em borbulhas nascendo, convidasse
Ao doce passarinho, que vos conte
Quem da cara consorte o apartasse ;
Depois, cobrindo a neve o verde monte,
Ao gasalhado o frio nos levasse,
Avivando o juizo ao doce estudo,

Mais certo manjar de alma, emfim, que tudo.

Cantara-nos aquelle, que tão claro
O fez o fogo da arvore phebea,
A qual elle em estylo grande e raro
Louvando o crystalino Sorga enfreia;
Tangera-nos na frauta Sanazaro,
Ora nos montes, ora por a areia;
Passara celebrando o Tejo ufano
O brando e doce Lasso castelhano.

E comnosco tambem se achara aquella,
Cuja lembrança e cujo claro gesto
N'alma sómente vejo, por que n'ella
Está em essencia puro e manifesto;
Por alta influição de minha estrella
Mitigando o rigor do peito honesto,
Entretecendo rosas nos cabellos,
De que tomasse a luz o sol em vel-os;

Mas por onde me leva a phantasia?
Porque imagino eu bemaventuranças,
Se tão longe a Fortuna me desvia,

Que inda me não consente as esperanças?
Se um novo pensamento Amor me cria
Onde o logar, o tempo, as esquivanças
Do bem me fazem tão desamparado,
Que não pode ser mais que imaginado?

Um novo Pensamento era a idealisação em que andava da Epopêa nacional, a que o amor viera dar um maior relêvo, para impôr a sua supremacia mental; elle mesmo o confessara a Catherina de Athaide. N'este naufragio da vida em que se via envolvido, o seu desamparo difficultava-lhe a realisação d'esse Pensamento novo. Na tediosa vida da guarnição militar de Ceuta refugiava-se n'esse Pensamento, deixando nas imagens e comparações poeticas as impressões immediatas que ia recebendo.

A comparação da valentia do Condestavel Nun'alvares Pereira equiparada á do leão, na bella estrophe 34 do canto Iv dos Lusiadas, tem sido censiderada como inspirada pelas impressões directas do tempo da estação de Camões em Ceuta :

Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortissimo leão,
Que cercado se vê dos cavalleiros,
Que os campos vão correr de Tetuão;
Perseguem-no co'as lanças, e elle iroso

Torvado um pouco está, mas não medroso.

No seu estudo A Fauna dos Lusiadas, observa o Dr. Balthazar Osorio: « Poderia talvez julgar-se que este facto, o leão cercado por cavalleiros portuguezes, não encontraria

documento historico que o comprovasse, e que a estrophe transcripta contém apenas uma phantasia do Poeta, esquecendo-se que elle é sempre exacto em tudo que conta ou a que se refere. Todavia a caça aos leões era passatempo vulgar entre os nossos fronteiros do Moghreb; quando lhes faltavam mouros para combater, o que era raro, iam desafiar os leões no fôjo, isto talvez para que o vigor não esmorecesse ou para que o ânimo se não quebrantasse.» E para fundamentar este asserto, transcreve dos Annaes de D. João III este quadro, tracejado por Frei Luiz de Sousa: «e cerraremos este capitulo com umas perigosas montarias de leões, a que o Conde era tão affeiçoado, como se foram de muito passatempo. Disseram-lhe um dia, que no valle dos Borrazeiros estavam dois leões que tinham morto um cavallo: mandou logo vir lanças d'arremêço, e espingardeiros a cavallo, e bater o mato. A poucos golpes saltou fóra um dos dois, e vendo-se cercado de cavallaria e de muitos cães, poz as mãos em alguns, e assi os abriu e matou logo, sendo assás bravos, como se foram cordeirinhos. Tirou-lhe o Conde primeira lança e pregou-lh'a de maneira que o leão se sintiu, e acudindo á dor lançou mão da lança, e logo correu a vingarse, mas em continente foy passado de outras; porque D. Francisco acudindo a seu pae, e Fernão da Silva que com elle estava, empenaram no leão cada um sua lança; e D. Francisco não contente com o arremêço, tomando nas mãos outra de monte, poz as pernas ao cavallo e o foi encontrar a todo o correr, de sorte que lh'a ensopou no corpo.

Mas não lhe houvera de sahir bem o lance, se não fôra soccorrido do Conde, que com segunda lançada varou o leão de parte a parte, e logo o cravaram tantas dos cavalleiros que ficou estirado, e o Conde o mandou levar em uma azémola á Condessa, que muito aborrecia taes presentés.» (Annaes, p. 295.)

No canto IV dos Lusiadas, estancias 36 e 37, ha uma outra comparação, que se torna realidade em um facto narrado por Fr. Luiz de Sousa, nos Annaes de D. João III:

Qual parida leôa, fera e brava,

Que os filhos, que no ninho sós estão,
Sentiu, que emquanto pasto lhe buscara
O pastor de Massylia lh'os furtara.

Corre raivosa, e freme, e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atrôa e abala.

Eis a passagem de Frei Luiz de Sousa, succedida com Antonio Leite, capitão de Mazagão: «tendo novas de uma leôa, que com dous filhos já grandes lhe tinha feito dano em um fato de gado, se foi a ella com nove de cavallo, e fazendo-lhe tiro um bésteiro de cavallo por nome Antonio Rodrigues, a leôa sahiu a elle, e colheu o cavallo pelas ancas com unhas e dentes; o cavalleiro esteve tão acordado que levou da espada e a feriu em uma pá; e cahindo logo o cavallo, e elle juntamente, se levantou ligeiro em pé, e com a espada na mão e gentil ár deu ao andar pera a leôa, que todavia com estar brava e muito assanhada o arreceiou; e fez volta bramindo, e correu contra outros cavalleiros e a ambos feriu os cavallos: e todavia não pôde escapar

a tantos e ficou morta. Mas affirma o capitão, que tendo morto muitos outros leões, não vira nenhum egual a esta, nem em ferocidade nem em ligeireza.» (Ib., p. 209.)

E' para reparar que estas duas comparações se encontram ambas no Canto IV dos Lusiadas, que o Dr. Storck julga já andar em elaboração, quando o poeta esteve na guarnição de Ceuta.

Na Egloga VII Os Faunos, traz comparações da zoologia africana:

Nas Lybicas montanhas,

As Scitalas são féras, de pintura
Tão singular, que co'a vista encantam,
As hyenas levantam

A voz tão natural á voz humana,

Que a quem as ouve, facilmente engana.

1

A vida na guarnição militar nas possessões de Africa acha-se descripta em umas Trovas de Manoel Pereira d'Ocem, estando em Arzilla, a um seu amigo, que estava em Portugal, em que lhe dá novas de si e da Terra. Juromenha publicou essas Trovas em nome de Camões, inferindo d'ellas factos biographicos do poeta; mas reconhecido o seu verdadeiro auctor, são sempre aproveitaveis para a vida do poeta, representando-nos o meio militar em que passou dois annos:

1 Publicadas no Cancioneiro geral de A. F. Barata. Evora 1902.

■ Obras, t. iv, p. 147 a 159. D. Carolina Michaëlis, que examinou o Ms. do Cancioneiro impresso por Barata, procedeu a essa restituição do apocrypho camoniano, indicação seguida pelo Dr. Storck. (Vid. Zeitschift fur romanische Litteratur, vol. vi, p. 416.)

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