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Melhor fôra ter caladas

As novas que ha n'esta terra,
Pois aonde vim buscar guerra
Sómente achei badaladas.
Assim estou tão enfadado...

A gente é peor em dobro,
As vergonhas são perdidas,
Fallam das alheias vidas

E põem as armas em cobro.
Poucos hão medo á vergonha,
E a mui poucos se hade ouvir:
Mais vale morrer com honra
Que deshonrado bivir.

Não ha conversação como d'antes
Por que ha mister cem mil tentos
Com moradores praguentos
E fronteiros mui galantes...

Nenhum remedio a meus danos
Vejo por alguma via,

Senão vendo aquelle dia

Que hade ser fim de dois annos...

Da guerra novas mais certas
Brevemente são contadas,
No verão portas fechadas,
No inverno pouco abertas.
Qualquer Mouro desmandado,
Nos commette sem n'hum pejo.
E aquelle postigo viejo,
Que sempre esteve fechado.

Isto não é praguejar,
Mas toda a culpa é da fome,
Porque gente que não come
Mal poderá pelejar...

Tudo são queixas em vão,
E tudo são vãos clamores,
Capitão dos moradores,
Elles contra o Capitão...

E em uma segunda Carta, Manoel Pereira de Ocem exprime a mesma melancholia camoniana, terminando cada estrophe com dois versos centonicos de romances velhos:

Andando só, como digo,

Apartado da manada,
Fazendo contas commigo,

Que emfim não fundem nada...

Vinham de esporas douradas
E vestidos de alegria,
Com adargas embraçadas,
La flor de la Berberia...

Gentes de muitas maneiras
E de diversas feições,
Corriam a estas tranqueiras
Como a ganhar perdões;...

Contar feitos esquecidos
E' muito contra minh'arte,
Houve mortos e feridos.
Houve mal de parte a parte.

Quizera dizer-vos mais,
Mas pois vos não digo tudo,
Fazei conta que sou mudo
E entendei-me por sinaes.

N'estas duas Cartas em trovas de Manoel Pereira de Ocem, além da vida desconfortada da guarnição descreve-se uma d'essas frequentes escaramuças contra os assaltos dos bandos berberes nas suas depradações e surprezas. Foi n'uma d'estas escaramuças aventurosas e inglorias que perdeu Camões o olho direito, em risco de morte por falta de tratamento. Deixando a lenda infundada de um

combate naval batendo-se ao lado de seu pae, como conta Faria e Sousa, é certo o facto, que perdió el ojo derecho, aviendole dado en el una centella de un canonazo.» (Vida seg., § 14.) Na Canção XI, em que o Poeta recapitula toda a sua vida, allude ao facto de ter provado o fructo acerbo de Marte nos olhos, em que ficou a marca do infesto fogo. No retrato gravado, cópia de um retrato a oleo, que se publicou em 1624 nos Discursos varios de Manel Severim de Faria, é representado Camões de meio corpo, de tres quartos para a esquerda, cego do olho direito; authentíca a nobre cicatriz do poeta. Tambem na Carta primeira da India chasquêa do seu defeito, ao qual torna a apontar em um magoado Epigramma, e no A B C feito em mo

tes:

Galathêa sois, senhora,
Da fermosura extremo,
E eu perdido Polyphemo.

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Segundo os costumes da epoca, o serviço em Ceuta era obrigatorio por dois annos, para poder-se entrar na posse de qualquer rendosa commenda. Foi cumprindo este requesito, que Gonçalo Mendes de Sá, o primogenito de Sá de Miranda, morreu em 1553 na

1 Nas copias d'esta gravura inverteu-se por impericia a imagem, ficando Camões cego do olho esquerdo na copia de 1639, na de 1641, e na de 1731. Faria e Sousa fez uma copia á penna de um retráto a oleo, que pertencera ao licenciado Manoel Corrêa; n'elle estava leso o olho direito.

surpreza perto de Ceuta, desastre memoravel na historia portugueza. Manoel Pereira de Ocem, que se achava em Arzilla, assim o confirma na Carta:

Nenhum remedio a meus danos
Vejo por alguma via,

Senão vendo aquelle dia

Que hade ser fim de dois annos.

O que determinaria o regresso de Camões a Lisboa, e como fixar-lhe a data? Em Novembro de 1549, o velho Capitão de Ceuta, D. Affonso de Noronha, foi chamado á côrte para partir para a India como Vice-rei na Armada de 1550. Camões acompanhou-o para Lisboa, no empenho de seguir com o valente cavalleiro para a India. A resolução do poeta, abandonando agora o pensamento africano, que tanto o inspirava no seu ideal épico, obedecia ao desgosto da inanidade de todo o esforço, vendo desmoronar-se o Imperio que os antepassados cimentaram com o seu sangue. Em 1549, mandou D. João III que se abandonasse Arzilla e Alcácer-Ceguer; a demora de Camões em Africa era um confrangimento de espirito. A India apparecia-lhe agora como a miragem da Era dos Descobrimentos, e lá esperava encontrar as tradições vivas do heroismo, com que fôra fundado o Imperio oriental. Não era o ânimo de lucro que o impellia para a India, mas a ardente aspiração de dar realidade ao novo Pensamento. O abandono de Arzilla e Alcacer Ceguér deixou o vestigio da sua lethal impressão nos versos de outros poetas; por ventura as Outavas em endéchas sobre o despejo de

Arzilla, de um anonymo, pertenceriam a Manoel Pereira de Ocem?

Desde que Dom João III mandou abandonar Arzilla em 1549, considerando mais vantajosa a concentração de forças na India por se segurar e explorar com mais vantagem aquelle remotissimo imperio, a Africa tornava-se um campo esteril para o heroismo portuguez. Este golpe abrupto na aspiração de Camões, que comprehendia a necessidade da acção de Portugal no norte de Africa para salvaguardar a segurança das nações meridionaes, veiu desnorteal-o na sua actividade pensando em acompanhar para a India Dom Affonso de Noronha, que fôra chamado pelo rei. O abandono de Arzilla deixou um ecco doloroso na poesia d'esse tempo; existem umas Outavas em endechas Sobre o despejo de Arzila em dia de S. Bartholomeu, nar. rando o vergonhoso acontecimento:

Quem a meu pranto dará companhia
Que faz a meus olhos de lagrimas fontes,
Para de novo chorar pelos montes,
Que a filha de Jove mil annos carpia:
Arzilla mui cheia de cavalleria,

Que a Mouros e Africa fez tão crûa guerra,
Soo jaz agora desfeita por terra,
Deixada por medo a quem a temia.

Oh quanto ditosos e bem afortundos
Foram aquelles, a quem a ventura
No campo de Arzila lhes deu sepultura,
Antes que vissem seus campos deixados.

Morreram por Patria, por pram de seus fados,
Mas vós, os que vivos de Arzilla partistes,
Em a ultima hora dos olhos a vistes,
Deveis para sempre ser magoados:

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