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que tinham militado em Africa, e que eram assim nobilitados para exercerem funcções especiaes, entre as quaes uma era a de pegarem ás varas do pálio na Procissão do Corpo de Deus, recebendo por isso uma paga mercenaria. Foi justamente no dia da Procissão do Corpo de Deus em Lisboa, em 16 de Junho de 1552, que se achou Camões envolvido em uma contenda em que teve de arrancar da espada e ferir Gonçalo Borges, creado dos arreios de D. João III, quando passava a cavallo por uma das ruas da procissão, entre o Rocio e Santo Antão. Gonçalo Borges era filho de Antonio Borges de Miranda, senhor de Carvalhaes, Ilhavo e Verdemilho, e de uma senhora da Casa de Barbacena; fôra porém roubado da successão da casa assim como seu irmão Simão Borges, porque seu pae passara a segundas nupcias com Antonia Berrêdo, amasia de D. João III, que fez succeder na casa o filho d'este segundo consorcio Ruy Borges Pereira de Miranda. O rei iniquo consolara Gonçalo Borges dando-lhe o cargo de creado dos seus arreios; é de suppôr que motejado de pobre, Camões lhe replicasse com a ignavia da situação, e se originasse d'elle ou de dois embuçados que passavam, a contenda brusca em que Camões arrancou da espada, em prol dos amigos que reconhecera. Estava dado o passo definitivo para a sua desgraça; cahira nas garras da justiça. A solemnidade do dia e a presença do rei na cidade, aggravavam sobremaneira o facto de puchar da espada e de ferir o creado do monarcha. Perturbar o apparatoso espectaculo religioso, que encantava o povo,

deslumbrado com a excepcional sumptuosidade! Vejamos o quadro conforme os costumes do tempo.

A hostia ou eucharistia era levada em uma custodia de ouro, cravejada de brilhantes, dentro de uma charola guayolla ou nicho envidraçado, em procissão solemnissima na primeira quinta feira da outava de Pentecostes, partindo da Sé cathedral até ao convento de S. Domingos, regressando outra vez á sé. O Rei acompanhava a pé debaixo do pálio, levando á sua direita o princepe herdeiro; pegavam ás varas do palio outo Cavalleiros africanos, estipendiados pelo Senado, e para isso nomeados. Trez Vereadores de vára vermelha seguiam atraz, ladeando o pálio todos os fidalgos livremente. Exhibiam-se os Officios com os seus Castellos e Bandeiras, com os emblemas que os differenciavam, com suas Dansas figuradas, Tourinhas, dansa das Colarejas, das Hortelôas, das Corraleiras, das Regateiras. As Bandeiras dos Officios eram com paineis bordados a ouro sobre damasco, sobre brocado, symbolisando a actividade de cada officio, figurando tambem os seus Santos Patronos da Irmandade; os porta.estan. dartes vestiam ópas e tunicas avivadas a galões de prata. E além dos seus Estandartes, cada Officio exhibia Invenções, ou apparatos symbolicos e dramaticos do mais pittoresco effeito: os Hortelãos ou Almoynheyros levavam uma horta ou Almoinha; os Sapateiros um Draguo; os Armeiros levavam um Sagitorio, representando um soldado peão; os Peliteyros ou Surradores levavam o Guato paull; os Alfaytes a Serpe; os Tanoeyros levavam as Torres; os Pedreiros e Carpintei

ros o Engenho; os Calafates da Ribeira a Não e a Galé; os Esparteiros levavam a Dama e os Gallantes, com seus gestos e phrases desenvoltas; -o Rei David dançava diante do pálio e iam Previncos ou Diabos agrilhoados levados por Anjos, e Imperadores com sua côrte, Gigantes como S. Christovam; os Carniceiros iam com seu Emperador e Rey. Alguns Castellos eram substituidos por tochas de prata, como os Tabelliães, mercadores e Corretores. Depois dos Officios seguiam as Confrarias e Irmandades religiosas e as Communidades pela ordem estabelecida, Carmo e Trindade, S. Francisco da Cidade, Meninos Orfãos, Paulistas, Dominicanos, o Cabido e todos os Clerigos seculares, e o Senado, todos com suas tochas de cêra branca na mão. As ruas por onde passava a procissão eram tapetadas de verdura de espadana e areia encarnada, alecrim, e as portas, janellas e varandas eram ornamentadas com colchas de sêda, brocado, estendendo-se alcatifas, e pendurando colgaduras de raz; as ruas, pelo intenso calor, eram cobertas de tôldos. A Procissão dirigia-se a San Domingos pelas ruas da Praça da Palha, das Arcas e Tanoaria; todos os officios postavam-se em álas á porta do Mosteiro, onde se fazia a Prégação. Dom João III esmerava-se a dar todo o esplendor á Procissão do Corpo de Deus, e a Camara, para lhe prestar toda a sumptuosidade, creou mais tarde uma verba especial chamada do Rendimento da columnata.

No meio d'aquella multidão e arruido, era facil aos dois embuçados evadirem-se; Camões, sempre destemido, não fugiu, sendo por

isso prezo no Tronquo da cidade, onde ficou em consequencia da devassa sobre o ferimento e até livrar-se. O Tronco era a cadêa municipal, que além de detenção para as contravenções e cumprimento das sentenças dos Almotacés, tambem servia de calabouço para custodiar os delinquentes emquanto não eram julgados até que iam cumprir sentença na Cadêa. Nas Ordenações do Reino, livro v, titulo 97, acham-se valiosas indicações sobre o Tronco: «E todas as pessoas que na cidade de Lisboa fôrem prezas pelos alcaides d'ella, por serem achadas de dia ou de noite embuçadas ou com armas defezas, ou de noite depois do sino de recolher com quaesquer armas ou sem ellas, sejam levadas ao Tronco e prezas em elle, e os alcaides não levarão as pessoas, que por os ditos comprehenderem, á Cadeia da cidade e no dito Tronco lhes darão as Justiças livramento a que pertencer paz e livramento. E o alcaide que levar alguns dos taes prezos a outra qualquer prizão, incorrerá em suspensão de seu officio até nossa mercê. E assim havemos por bem, que não sejam mudados nenhuns dos ditos prezos para outra alguma cadeia da cidade, nem da côrte, salvo quando por especial mandado do Regedor algum fôr mandado mudar, por lhe sahirem culpas mais graves das acima declaradas. E sendo prezos por outros casos, os poderão levar ao Tronco, comtanto que ao outro dia pela manhã até o meio dia os levem á cadeia da cidade, sob pena de as Justiças que assim o não fize rem pagarem trinta cruzados por cada vez, a metade para o accusador e a outra metade para o Hospital da cidade de Lisboa.>

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Como era de praxe, pelo pórte de arma defeza tinha o poeta de ser prezo no Tronco; . mas em consequencia do ferimento em um creado do paço e na côrte, conforme a devassa, era obrigatoria a mudança para uma enxovia da Cadeia da cidade. Competia ao Regedor das Justiças o ordenar essa mudança; por certo a amisade de Camões com a familia de D. João da Silva, então Regedor, influiria na attenuação d'estes rigores. A prisão do Tronco, como se sabe por uma carta regia de 18 de Janeiro de 1567, era nas casas de Affonso da Barreira; ahi se ordena aos vereadores: « que pela muyta necessidade que ha de hua cadea nessa cidade, pera os prezos se prenderem, asy de noite como de dia, ei por bem e vos mando, que compreis

as

casas d'Affonso da Barreira, morador n'essa cidade, em que soya estar o Tronco, pelo preço que vós com elle concertardes ou pelo em que forem avaliadas no estado em que ora estão, nas quaes casas e chão d'ellas fareis fazer cadeia, pera se n'ella prenderem os prezos que eu mandar, e pera os da almotaçaria... E mando que ellas fiquem pera sempre á dita Camara...,1

Estava pois em 1552 o Tronco da cidade estabelecido nas casas de Affonso da Barreira, em um edificio adaptado, o qual passado tempo se considerou falto de condições, como se de. prehende por um Accôrdo em Vereação de 6

1 Livro I de Cons. e Dec. d'el-rei D. Sebastião, fl. 43. Ap. Elementos para a Historia do Municipio de Lisboa por Freire de Oliveira, t. 1, p. 413.

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