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de Outubro de 1515, «sobre algua pratica que ouveră do que era ordenado se levar de tronquagem n'aquellas pessoas, que ao dito Tronco som levados presos, e do que se levava, e por se avitarem alguūs danos e comodias que os tronqueiros que por os tempos tem carrego d'estas no dito Tronco, levam dos que assi vam presos, - accordaram todos juntamente que o dito tronqueiro, que no dito tronco ora está, e d'aqui avante por os tempos esteverem, sejam obrigados de dar candea com que se vejam os ditos presos; e assi sejam obrigados de mandar levar suas necessidades a camareiros fóra, tudo á custa d'elles ditos tronqueiros; e elles levarão de cada hua pessoa, que assi for preso, quer jaça muyto tempo, quer pouco, dezeseis reis e mais nom, s. quatorze rs. de tronquagem, e dous para as ditas despezas; e qualquer tronqueiro que mais levar d'aqui ávante que os ditos 16 rs., na maneira que dito he, seja prezo, e da cadea pagará dez cruzados para as obras da cidade; e assi sejam os ditos tronqueiros obrigados a dar auga para beber, em abastança, aos ditos presos; e se algú dos ditos presos se queixar que lhe no dam a dita auga, ou nom deem as ditas cousas sobreditas, e lhe for provado, encorrerá na dita pena; e bem assi no levará nehuu premio de nehūu preso, por o teer e çima, ne solto, ne em outra maneira, soomente os ditos dezeseis rs., so a dita pena.> Por este extracto do accordo da vereação com

1 Livro I da Vereação da Camara de Lisboa. fl. 8. Apud Freire de Oliveira, Elementos.

os procuradores dos misteres e com o Vedor da Fazenda, se vêem os costumes da prisão do Tronco, aos quaes ficou sujeito Camões durante os longos mezes que ahi esteve detido. Em um Soneto, (inedito até 1880) consignou Camões o soffrimento que o acabrunhou na prisão do Tronco:

Tristezas! compassar tristes gemidos!
Passo a noite e o dia imaginando;
N'esta escura cova estou cuidando
De me vêr com meus dias tão perdidos!

Vão passando como sombra, escondidos,
E sem fructo nenhum irem deixando,
Mais que os vêr passando e rodando
Com a roda da fortuna e meus sentidos.

N'estas imaginações, triste, cominigo
Estou, na alma enlevado, que não sento
Se com alguem fallando estou, o que digo.

Se vem alguem estar, no pensamento
Nem sei dizer de mim n'este tormento
Se estou fóra de mim, se estou commigo. 1

A vida do carcere tenebroso tem um certo realismo n'este Soneto, embora imperfeitamente conservado na cópia inedita; o que o torna admiravel é o quadro subjectivo, em que todo o horror do ambiente se reflecte na angustia moral do poeta. A impressão profundamente dolorosa d'esses outo mezes de prisão consignou-a Camões na assombrosa Canção XI, com os mais patheticos traços autobiographicos:

1 Soneto 355, da traducção de Storck, e Vida e Obras de Camões, p. 423.

A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contraria via
No perigo primeiro: e no segundo
Terra em que pôr os pés me falecia,
Ar para respirar se me negava,

E faltava-me emfim o tempo e o mundo.

Que segredo tão arduo e tão profundo,
Nascer para viver, e para a vida
Faltar-me quanto o mundo tem para ella:
E não poder perdel-a,

Estando tantas vezes já perdida!

Camões escreveu estes versos já como recordação do passado, mas é vivissima a emoção persistente; ahi considera o perigo primeiro, quando foi arrojado ao carcere do Tronco como um assassino, e abandonado ás leis implacaveis pelos que se diziam seus amigos, que se lhe mostravam contrarios. O perigo segundo, designa a situação em que pelo facto de puchar espada onde estava o rei e sua côrte, se tornava o crime de lesa-magestade, estando por isso incurso em pena maior ou capital. Terra em que pôr os pés lhe falecia, e mesmo a falta de tempo, alludem ao seu embarque forçado, substituindo um individuo obscuro, e em occasião em que seu pae andava embarcado, deixando sua mãe des valida quasi ao desamparo.

Na situação angustiosa de Camões, em que -a piedade humana lhe faltava, como descreve na Canção autobiographica, o unico apoio moral que lhe deu validez foi ainda o pensamento da Epopêa portugueza. Era-lhe agora suggerido pelo apparecimento da Historia do Descobrimento e Conquista da India pelos Portuguezes, impressa em Coimbra

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por João de Barreira e João Alvares, e escripta por Fernão Lopes de Castanheda, que animou com as suas impressões directas as empolgantes narrativas; como se lê no colophão d'esse livro in folio Acabou se aos vinte dias do mez de Janeiro de M.D.LII.» Camões estava livre ainda e longe do accidente que o levou á prisão no Tronco; ahi n'essas horas amarguradas pôde elle repassar-se da leitura da Historia emocionante de Fernão Lopes de Castanheda, escripta nos momentos de repouso que lhe ficavam ao valente soldado, das fainas de bedel da Universidade de Coimbra. De facto nos Lusiadas as suas fontes historicas encontram-se immediatamente na obra de Castanheda, de 1552, completadas mais tarde com as narrativas das Decadas de João de Barros. 1 Na cadêa do

1 Attribuia-se infundadamente ás Decadas a fonte immediata dos Lusiadas; em uma Carta de D. Marcos de S. Lourenço, commentador do principio do seculo XVII, descrevendo o seu trabalho de annotação dos Lusiadas, declara: Na geographia segui sempre João de Barros, homem famosissimo e em tudo excellente.» E termina: Mais de meio Commento tirei de João de Barros, e sem a sua geographia impossivel he a entendimento algum, commentar Luiz de Camões...» (Ap. Juromenha, 1, 326.) Storck exclue pelo exame bibliographico a influencia immediata de João de Barros, notando que a primeira Decada acabou de imprimir-se em Lisboa, por Germão Galhardo aos 24 dias de Março de 1553 - isto é, dois dias antes de Camões partir para a India; e a segunda appareceu posteriormente tambem em Lisboa pelo mesmo impressor e no mesmo anno, talvez nos fins de 1553.. (Vida, p. 427.) O Dr. José Maria Rodrigues, no Instituto, determinou a influencia immediata de Castanheda.

Tronco teve como refugio a leitura da Historia de Castanheda, que o estimulava á idealisação da sua Epopêa. Maudsley aponta, na obra Pathologia do Espirito, o influxo de uma ideia no equilibrio mental: « Não se pode negar que um projecto no qual um homem habitualmente se concentra, que está sempre no seu pensamento, e para a realisação do qual tende toda a sua energia, não modifique O seu caracter... » No meio de uma sociedade fanatisada, entre os desvairados da Valentia, e no conflicto de odientas mediocridades, tudo impellia Camões para a misanthropia; a sua ideia dominante, a expressão do ethos portuguez, em uma Epopêa nacional, que se foi definindo e apossando-se do seu espirito, tornou-se um refugio, um equilibrio mental nos Desconcertos do mundo, e contra os escalavros de um destino material. E a sua elaboração dos Lusiadas no carcere actualisa-se pelo roteiro do heroe confundido com o da sua proxima viagem para a India.

Emquanto Camões jazia desde 16 de Junho na prisão infecta do Tronco, preparavam-se ruidosas festas na côrte para a celebração do casamento do princepe D. João com sua prima D. Joanna, filha de Carlos v; o poeta seria informado pelos seus dois intimos amigos João Lopes Leitão e D. Antonio de Noronha, escolhido pela sua juvenilidade para justar com o princepe no projectado torneio de Xabregas. Já sete semanas tinham passado na angustia do Tronco, quando em 5 de Agosto de 1552 se celebrou o afamado Torneio de Xabregas, historiado por Jorge Ferreira de Vasconcellos no seu Memorial

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