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Escreve Silveira, nas Memorias de um Soldado da India: «parece cousa vergonhosa e de grande escandalo vêr o que muitos Vice-Reis tiram d'aquelle governo de tres annos: que não é sabido nem entendido o nu mero de dinheiro que embolsam, senão de pessoas que com secreta curiosidade o sabem observar, os quinhentos ou seiscentos mil cruzados, que a troco de tanto descredito da auctoridade real, sangue e vidas de seus proximos naturaes portuguezes embolsam.» (p. 146.) Diogo do Couto, no Soldado pratico, aponta alguns d'esses modos como roubavam, explorando a cunhagem e alteração do valor da moeda: «Quer um Vice-Rei bater moeda falsa, que assim lhe posso chamar, pois damnifica o povo: val o cobre a quarenta xerafins o quintal; batem os bazarucos a razão de sessenta e setenta; vem os mouros da ou tra banda, que trazem o olho em nossas cousas, e vendo o excessivo ganho, batem logo lá em terra firme grande quantidade de bazarucos e á formiga a metem em Goa, na qual ganham um poço de ouro, porque ainda a fazem mais pequena. Vêm os mercadores das vacas, padeiros, botiqueiros, hortalões, e todos os mais, ou não querem tomar a moeda, ou valendo trezentos reis um xerafim, pedem trezentos e sessenta; accrescentam um bazaruco na medida do arroz, no peixe, na carne; o padeiro faz o pão de menos pezo, e assim por esta maneira todas as mais cousas, com que os pobres perecem e clamam; acodem logo com o remedio, que é abater na moeda tres bazarucos, que valham dous, que é grande roubo, e assim o povo padece, e o

criado do Viso Rey, que abateu o seu cobre fica com cinco e seis mil cruzados de ganho, e se lhe quereis ir á mão, e dizeis que não póde bater aquella moeda, ri-se de vós e zomba de todos.» (p. 138.)

Depois d'isto, o quadro do funccionalismo afinado ao mesmo diapasão, leva a avidez até ao esgotamento das riquezas da India, acudindo n'esta ameaçadora escassez o commercio da China, e por ultimo o trafico real exclusivo do Japão. Silveira, nas Memorias de um Soldado da India, descreveu ao vivo esta miseria moral da administração portugueza, que era um symptoma da decadencia de um Imperio tão heroicamente fundado:

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Tem estes ministros da fazenda por tão proprio o que furtam, que já não fazem d'isso algum escrupulo de consciencia. Conforme a isto, os Escrivães que lançam aos soldados e o Feitor que lhes hade pagar o dinheiro, se concertam e fazem entre si sua repartição: o escrivão de boa habilidade entre dois soldados vivos transpõe um morto ou que anda na China; e depois na pousada fazem suas contas, e cada um leva o que lhe cabe do seu suór e trabalho.

« Outra se vae em criados de fidalgos, alcoviteiros, malsins, pagens e similhantes, que têm suas intelligencias para receberem com os soldados d'aquelle pagamento; e depois ficam em Gôa servindo a quem servem sem algum medo nem vergonha, por ser a India mãe piedosissima de velhacos e cruel madrasta de homens de bem.

« Outros têm amisades com os Capitães de fustas e galés: e a essa conta alcançam d'el

les que os ponham no Rol para receberem paga, e que os acompanham até encontrarem navios de chatins ou sahirem n'algum porto onde se fiquem, por que lhes importa muito chegar a Cochim ou ao Norte a certo negocio e algumas vezes a dar cutiladas ou fazer outra maior maldade por dinheiro que lhes dão.» (Silv. ib., p. 155.)

O modo como hoje se provê em nossas Armadas indianas é este. Dá-se ao Capitão do navio ou galé, que vae para o Malabar ou para qualquer outra parte, para cada soldado tanto para biscouto e arroz, quando não n'o ha nos armazens... e tanto para carne, pescado e outras miudezas, e cem pardáos de mercê sendo o navio ligeiro, se é galé trezentos, e ás vezes mais. Porém este provimento não é mais que por tempo de tres mezes: e depois lhe dão o dinheiro para elles se provêrem.

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Estes Capitães (exceptuando alguns zelosos e amigos da honra, que não são muitos) tanto que vêem na sua mão o dinheiro d'aquella provincia, fazem logo suas contas de quanto hão de forrar, para passarem aquelle inverno em Gôa com grande casa em rua corrente e seus pagens e bom cavallo, para melhor e com mais auctoridade poderem namorar, tratar com alcoviteiras e parar largamente aos aos dados. D'esta maneira enchendo a bolsa do mantimento do pobre soldado e da muxara (ração, do malaio musara) dos marinheiros que pagando-se quarenta não trazem mais de dezoito e algumas vezes menos vêm estes desalmados a ter cabedal para combater mulheres casadas e donzellas,

fazendo mil excessos... E no fim da jornada, quando fôra muita justiça fazel-os morrer por justiça, lhes dão uma Fortaleza de que em tres annos, por caminhos tão illicitos ou mais, venham a tirar mil cruzados, que com menos se contentam.» (p. 156.) O espirito do lucro confundia a actividade militar com a avidez da onzena e do mercantilismo, como descreve Linschott, no seu Itinerario: « Ha outros soldados que são empregados por alguns dos seus amigos a fazerem algumas viagens e a exercer alguns negocios, e são chamados Chatins, porque quando a Fróta se equipa se recusam a seguil-a, o que é da sua liberdade, e embora não vão á guerra nem por isso deixam de ser chamados soldados.» O senso moral soffrera uma profunda alteração na consciencia portugueza; com o seu raro tino critico indica-o Diogo do Couto, no Soldado pratico: no tempo de agora mais são os males que se dissimulam, que os que se castigam; porque ás vezes val mais a desculpa dos culpados, que a verdade dos leaes; ...quanto mais que os officiaes d'este tempo tem dado hum entendimento a este nome peitas, que lhe não dera melhor Bartholo para favor do seu direito; cuido que está provado pelos Padres confessores da Companhia, que são os mais rigorosos que agora ha em casos de restituição; e dizem, que peita se entende a que se toma da parte antes de a despachar e concerto que com ella fazeis por seu despacho; mas se estas duas cousas não intervierem no negocio, se a parte foi despachada simplesmente e á boa fé lhe foi feita mercê pode muito bem depois de despa

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chada a parte, gratificar e agradecer ao despachador o beneficio recebido, e que se o não fizer será havido por ingrato e máo homem de côrte, etc.» (Ib., p. 14.) Além da moral jesuitica, fundada em restricções mentaes e sophismas soezes, a Companhia exercia um grande influxo de intriga pelo seu desenvolvimento temporal no governo da India, em que se tornara um elemento perturbador. Camões conhecera esse influxo deleterio nos estudos humanisticos de Coimbra, cuja direcção tiraram ao Mosteiro de Santa Cruz; fôra encontrar na côrte de D. João III esse falso ascetismo, com que se apoderou da familia real, extorquindo-lhe espantosos privilegios e riquezas; vinha agora encontrar uma mais ferrenha diligencia da Companhia, que por tantos aspectos se lhe mostrara antipathica. A vida da India, para onde os acontecimentos o impelliram, era um abysmo onde os odios, as doenças, os desastres e a miseria o supplantariam se o não fortificasse uma aspiração idealo Pensamento novo que o alenta e a que procura dar fórma artistica. Esses dezeseis annos, que passou na India, longe da Sião querida, que era Lisboa, acham-se constituindo dois periodos: o 1.o comprehende a sua actividade militar durante os cinco annos de serviço obrigatorio (1553 a 1558); o 2.o em que em suave convivencia litteraria se refugia na idealisação poetica, repassando e coordenando as suas composições.

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