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Na Elegia III, em que relata ao seu juvenil amigo D. Antonio de Noronha a viagem para a India, começa pelo dito de Themistocles ao poeta Simonides que lhe exaltara a arte mnemonica:

Se me desses uma arte, que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias!

Se este excellente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente
Em longas esperanças degradado;

De que serve ás pessoas o lembrar-se
Do que se passou já, pois tudo passa,
Se não de entristecer-se e magoar-se?

Os primeiros dias da viagem passaram se serenamente, dando logar ao poeta a estas intimas concentrações de melancholia, em que as ondas o embalavam:

Soltava Eolo a rédea e liberdade
Ao manso Favonio brandamente,
E eu a tinha já solta á saudade.

Neptuno tinha posto o seu tridente;
A prôa a branca espuma dividia,
Com a gente maritima contente.

O côro das Nereidas nos seguia;
Os ventos, namorada Galatêa,
Comsigo socegados os movia.

Eu, trazendo lembranças por antolhos,
Trazia os olhos na agua socegada,
E a agua sem socego nos meus olhos.

A bemaventurança já passada

Diante de mi tinha tão presente,
Como se não mudasse o tempo nada.

Estas lembranças, que me acompanhavam
Por a tranquilidade da bonança,
Nem na tormenta triste me deixavam;

Porque, chegando ao Cabo da Esperança,
Comêço da saudade que renova,

Lembrando a longa e aspera mudança;

Começa aqui a antithese, em que á tranquilidade bonançosa dos primeiros dias da viagem se contrapoz a tremenda borrasca que dispersou repentinamente a Armada de Fernão Alvares Cabral. A náo Conceição arribou a Lisboa; a Santa Maria da Barca só chegou a Cochim em fins de Novembro; e a Loreto ou Rosario teve de ir invernar a Moçambique. Sómente a náo San Bento chegou a Goa; d'ella diz Perestrello na sua Relação: << fazia tanta vantagem a todas as outras em grandeza, fortaleza e bondade.»

Estes desastres das Armadas que partiam para a India provinham de serem despachadas muito tarde do reino, transpondo difficilmente o Cabo, e pelos fortes ventos do Nordeste tendo de invernarem em Moçambique. A epoca em que partiu a Armada em que ia Camões, 26 de Março, fazia prevêr as calamidades succedidas. Em uma carta do Vicerei D. Francisco de Almeida, já se accusa o erro de despachar as Armadas para a India em Abril. Em fins de Março é que começam

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não são chegados cá os officiaes, nem outros provimentos, e tudo he porque os vossos officiaes de Lisboa dizem qus vos forram dinheiro em despedir as Armadas em Abril.» E accrescenta mais adeante: « E

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as fortes tempestades da Costa africana, que duram até Septembro; o grande fundador da Geographia geral Bernard Varenius, mos trando como na zona tropical só ha duas estações, verão e inverno, differenciando-se pelo calor e humidade, exemplifica esta lei clima tologica como a que se passa na costa occidental de Africa ao sul do Equador: «O inverno começa pouco mais ou menos ao mesmo tempo que a nossa primavera, e dura de 15 de Março até 15 de Septembro. O verão vae de 15 de Septembro até 15 de Março. Durante o verão as chuvas faltam totalmente ou são raras, o céo está constantemente sereno. Durante o inverno, ao contrario, raramente apparece o sol um dia, tanto as nuvens e as chuvas obscurecem a atmosphera. As trovoadas são tambem frequentes. Não chove quasi nunca todo o dia. mas a maior parte do tempo, durante duas horas da manhã e duas da tarde, cáem fortes bátegas de agua, que absorve logo a terra ávida...» A boçalidade da administração, indifferente ás leis naturaes, que afrontava por sordidos interesses, causava as frequentes perdas das náos

mande V. Alteza que partam em Fevereiro, o mais tardar, por que bem vêdes o jogo que vos tem feito o partirem as nãos de lá tão tarde; e perguntae a vossos officiaes qual he mór perda se gastar e perder um mez e dois de soldo d'armada, que elles dizem que vos aproveitam em deter a partida das náos em Lisboa, où se he mór perda um anno que as náos ficam em Moçambique, por que chegam tarde, do que elles darão contas a Deus da gente que ahi morre ao desamparo, de que não tenho culpa.» (Ap. Annaes das Scienc. e das Lettras, 11, 144.)

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da carreira da India, e enorme sacrificio de vidas. A gente da Armada era mettida a capricho dos Capitães sem lotação. No Soldado pratico, observava Diogo do Couto: Dois mil homens-parece que basta, porque vae muita para a gente ir sã e bem tratada no alojamento; porque a viagem é comprida e trabalhosa, e differentes chuvas, aonde a gente mata uma a outra; e tambem irão mais seguros, se retardarem no caminho mais do tempo acostumado, de não terem tanta falta de agua e de mantimentos; e seria de parecer, que não fosse toda a gente de armas, se não alguns homens do mar bombardeiros, para ficarem servindo na India, de que ha muita falta;... (p. 35.) Francisco Rodrigues da Silveira, nas Memorias de um soldado da India, descreve as molestias dos que se embarcavam n'esta carreira; «corrupção de gengivas, (escorbuto) febres pestilentas, fluxos de ventre e outra grande copia de enfermidades, que muitas vezes consomem na viagem a maior parte, causadas assim da malicia e da diversidade dos áres e climas por onde passam, mantinientos pôdres e de pessima qualidade. que os infernaes ministros do provimento em Lisboa mettem n'ellas, e tambem da fome, que tendo por provimento de el rei prover-se cada náo por sete mezes, as

1 Escreve Diogo do Couto, no Soldado pratico, p. 8: este reyno está muito falto d'estes officiaes (pilotos) havendo n'elle os melhores, que se podem achar em todo o mundo; e vem esta falta de pilotos e homens do mar das muitas Náos que são perdidas n'esta car reira de annos para cá, por nossos peccados»..›

não provêem senão por cinco, com que depois vêm a perecer os miseraveis, se na viagem põe mais tempo, como de ordinario acontece...» A todos estes medonhos accidentes ficou exposto Camões, organisação delicada de artista, temperamento destinado ás contemplações especulativas. Sómente o poder de uma ideia poderia influir-lhe uma latente energia.

Cheio de interesse é o roteiro da sua viagem, que por um rasgo genial identificou nos Lusiadas com a róta de Vasco da Gama. O Dr. Storck notou esta circumstancia: << Mas podemos compôr um quadro vivo dos acontecimentos e das impressões de Camões lendo a descripção brilhante da expedição de Vasco da Gama; os factos são historicos, mas o pincel do grande artista retratou o que vira em 1553, dando-lhe um colorido pessoal.» (Vida, p. 446.) O que levaria Camões a syncretisar as duas rótas? Dois motivos: primeiramente a data da partida de Vasco da Gama em 28 de Março de 1497, era com differença de dois dias a mesma em que partira de Lisboa a Armada de Fernão Alvares Cabral em 26 de Março (Domingo de ramos) de 1553, e por tanto sob os mesmos accidentes das hoje conhecidas leis meteorologicas; em segundo logar, usava o poeta de plena liberdade de artista, por que no seu tempo não se conhecia o Roteiro apocrypho da viagem de Vasco da Gama, inintelligente fabricação litteraria,

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1 Gaspar Correa, nas Lendas da India, contra Castanheda e João de Barros.

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