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Com força desusada

Aquenta o fogo eterno

Uma Ilha, nas partes do Oriente,
De extranhos habitada,
Aonde o duro inverno

Os campos reverdece alegremente.
A Lusitana Gente

Por armas sanguinosas
Tem d'ella o senhorio.
Cercada está de um rio

De maritimas aguas saudosas;
Das ervas que aqui nascem,
Os gados juntamente e os olhos pascem.

Aqui minha ventura

Quiz que uma grande parte

Da vida, que eu não tinha, se passasse;
Para que a sepultura

Nas mãos do fero Marte

De sangue e de lembranças matizasse.

E depois de descrever em quatro bellissimas estrophes a emoção viva do seu amor desde o affastamento da côrte até este momento em que sente perdida toda a esperança, e nem mesmo se offende de vêr se esquecido, volve outra vez á paizagem da ilha:

Rio formoso e claro,

E vós, oh arvoredos,

Que os justos vencedores coroaes,
E ao cultor avaro,

Continuamente ledos,

De um tronco só diversos fructos daes;
Assi, nunca sintaes

Do tempo injuria alguma!
Que em vós achem abrigo
As maguas que aqui digo,

Emquanto der o sol virtude á lua;
Porque de gente em gente

Saibam, que já não mata a vida ausente.

Refere-se esta Canção vi á ilha de Ternate, como entendeu Severim de Faria? << N'este tempo em que andou pelas partes do Sul esteve nas ilhas de Maluco, e particularmente em Ternate, e de quem e do seu vulcão que está no cimo do mar, se faz particular menção na Canção que diz: Com força desusada, etc. »

No Canto x, estrophe 132, dos Lusiadas, descreve Camões o Archipelago das Molucas, especialmente Ternate, em que repete os mesmos caracteristicos da Canção VI:

Olha cá pelos mares do Oriente
As infinitas Ilhas espalhadas:
Vê Tidor e Ternate, co'o fervente
Cume, que lança as flammas ondeadas;
As arvores verás do cravo ardente,
Co'o sangue portuguez inda compradas,
Aqui as aureas aves, que não descem
Nunca á terra, e só mortas apparecem.

O Dr. João Teixeira Soares fez a prova completa de que a Canção VI contém a descripção exacta de Ternate; comecemos pela identificação do vulcão. Diogo do Couto descreve-o com circumstancias que coincidem com as referencias de Camões: « O monte de Ternate, que se alevanta do meio da Ilha, será de altura de duas léguas, e é todo cheio de arvoredo e de palmares: no meio d'elle tem uma estranha cova, que parece que desce

1 O Dr. Storck complicou o problema, dizendo, que o poeta não menciona o vulcão de Ternate, (Vida, p. 544) mas sim o da ilha de Banda, onde gratuitamente localisa a Canção vi.

ao centro, que é tão larga na bocca que escassamente se enxerga um homem de uma banda á outra,... O chão que em baixo apparece, ferve de continuo com a força de fogo que tem por baixo, e lança para cima muitas vezes um tão espêsso e fedorento fumo, que parece cousa que se póde palpar, e fede a enxofre, e a voltas lança uma grande quantidade de pedras vermelhas como fogo, que se espalham pelos áres como se sahissem da bocca de furiosas bombardas e espalhando-se por toda a ilha, com grandes terramotos, e cáem sobre a nossa Fortaleza e sobre a cidade, e algumas vezes se achou irem dar dezoito e vinte leguas de Ternate.»

Este fogo eterno, que aquenta a Ilha de Ternate, appresentava uma circumstancia especial, que o singularisava entre os outros vulcões, como observa João de Barros : « Quiz Antonio Galvão vêr aquelle mysterio da natureza, porque da Fortaleza de San João viam no cume da Ilha vaporar fogo ao modo que vêmos um forno de cal quando começa a cozer, sem luz alguma de dia, e de noite era cousa espantosa vêr as cores e faiscas de fogo e rescaldo que lançava em tôrno, cobrindo muita parte do arvoredo, da maneira que se elle cobre quando n'estas nossas regiões neva. Porém, isto não todo o anno, sómente nos mezes de Septembro e Abril, quando o sol se muda de uma parte a outra, que passa a linha Equinocial, que corta meio gráo d'esta ilha...» (Dec. III, liv. 5, cap. 5.) Foi por tanto no mez de Septembro de 1556, que observou Camões este phenomeno da revivescencia do vulcão maravilhoso de Ter

nate, demorando-se ahi até depois de Abril de 1557, passando grande parte da vida, que não tinha. Teixeira Soares mostrou como as mais notaveis circumstancias topographicas e outras da Canção VI assentam na Ilha de Ternate, achando na passagem dos Lusiadas o bastante para estabelecer a identidade da situação geographica. O verso: De extranhos habitada, commenta-o por esta descripção de João de Barros: « E duas cousas de um argumento para se poder affirmar que os habitantes d'ellas são de mui varias e diversas nações: a primeira, a inconstancia, odio, suspeitas e pouca fé, que entre si têm...; e a segunda, a grande variedade de suas linguagens, de maneira que um logar não se entende com outro, e como são varias, assim é o tom e modo diverso:... E porém todos confessam ser estrangeiros e não proprios indigenas e naturaes da terra »

E n'esta phrase de Diogo do Couto : « N'estas Ilhas todas não ha verão nem inverno» acha-se o sentido dos versos:

Aonde o duro inverno

Os campos reverdece alegremente.

O facto historico, da sustentação do senhorio das Molucas Por armas sanguinosas, é identificado por Camões nos Lusiadas (x, 132) no verso: Co'o sangue portuguez inda compradas. Uma particularidade topographica fixou Camões no verso:

Cercada está de um rio
De maritimas aguas saudosas.

Teixeira Soares projecta toda a luz sobre esta particularidade: «A Ilha de Ternate é circumdada de um recife de coral, onde o mar quebra, ficando entre ella e a Terra um como rio, e nos logares em que a terra fórma bahias offerece seguros ancoradouros.» Aos que imaginaram vêr na Canção vi referencia a Gôa (ilha apenas por ser circumdada pelo rio Mandovi) oppõe o camonista açoriano: «As suas aguas pela proximidade do mar são salobras, mas não maritimas, e pouco saudosas, pois que se acha povoada de corcodilos em tal abundancia, que mesmo nos passos mais breves é impossivel por causa d'elles a passagem a pé. Completa a sua prova de que não poderia referir-se a Gôa Camões, quando es

creveu:

Quem póde imaginar

Que houvesse em mim peccado
Digno de uma tão grave penitencia

Canção n'este desterro viverás...

<< nunca poderiam no seculo XVI ser applicadas a Gôa, que mesmo com relação á população portugueza, era depois de Lisboa, uma das nossas primeiras cidades. A qualificação De extranhos habitada, era de mais inadmissivel.» Teixeira Soares não explicou a allusão á lucta nas mãos do fero Marte, matizando-a com o seu sangue; a deposição violenta e prisão do feroz Duarte d'Eça, capitão

1 Cousas camonianas. (Velense, n.° 46, de 23 de Outubro de 1881. - Ilha de S. Jorge.)

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