uma espada para o fazer; com o qual medo todos os marinheiros nos começaram a ajudar a deitar o esquife ao mar, a que já com ajuda do calafate e guardião,, valentes homens do mar, tinhamos dado um apparêlho; e assim se foi em continente ao mar, com o calafate e marinheiros em busca da môça, que já não apparecia; e depois de duas grandes horas que lá andaram, a acharam sem falla sobre a agua, que andava acabando de morrer, com um rosto tão sereno e bem assombrado, que parecia viva; andou quasi uma hora sobre a agua, viva e morta sem nunca se ir ao fundo; encommendou-a o padre, e em uma alcatifa com um pelouro aos pés se tornou ao mar; e assim d'esta maneira e d'esta edade cortaram as parcas e seu fado os seus dias, etc. >> A funda poesia d'este lance descripto pelo naufrago é unisona com os sentidissimos Sonetos de Camões; os naufragos chegaram de Sumatra a Malaca, o emporio do Sul, onde já estava o poeta em 1561; n'este naufragio da 1 Historia tragico-maritima, t 1, p. 410. A impressão de Camões fôra suscitada por um desastre analogo de que ouvira ainda a memoria, na sua estada na Cochinchina. e que se relata nas Cartas do Japão: «Vindo de vagar nosso caminho antes da chegada á China, e estando junto de uma terra que se chama Cochinchina, a qual é junto da China, nos aconteceram dois desastres em um dia, vespera de Madanella. Sendo os mares grandes e de muita tormenta, estando surtos aconteceu... que a filha do Capitão cahiu ao mar, e por serem os mares tão bravos, não lhe pudemos valer, e assi em presença de seu pae e de todos se afogou junto do navio. Foram tantos os chôros e vozes, aquelle dia e noite, que era uma piedade mui grande vêr tanta miseria.» (Carta de 1549.) Náo San Paulo tambem se achou Bento Cal· deira, aquelle que fez a primeira traducção castelhana dos Lusiadas. O nome de Dinamene será uma apropriação de Dindymene, uma deusa do mar? Assim fazia Camões a apotheose da desditosa donzella, sobre que tanto se fallara em Malaca. Por este mesmo anno de 1561 entrava Pedro Barreto Rolim na Capitania da Sunda; em Malaca se encontraria Camões com elle, e ahi contraíu a pequena divida, que poucos annos depois tão cruamente lhe exigiu em Moçambique, quando para alli foi transferido. Aqui em Malaca vivia em 1561 o velho chronista Gaspar Corrêa, occupado a retocar o manuscripto das suas Lendas da India, livro extraordinario de verdade e espontaneidade moral de um alto caracter. Gaspar Corrêa, filho de Pedro Corrêa Payo, nascera em 1495, por isso que declara ter embarcado para a India com dezesete annos, com Jorge de Mello Pereira em 20 de Agosto de 1512, na armada de outo náos que partira para Cochim. Por 1529 estava de regresso a Lisboa, apparecendo o seu nos assentos das Moradias da Casa real, com recibo de Junho assignado por sua mão. Voltou para a India, e residia casado com Anna Vaz em Malaca, com um filho menor, de nome Antonio Corrêa. Era considerado como cavalleiro da Casa real e da Ordem de San Thiago. Camões ahi teria 1 Antonio Maria de Freitas (Nicoláo Florentino) O assassinato de Gaspar Corrêa, artigo documentado. No Diario da Manhã, de 24 de Maio de 1891. ouvido citar o seu nome, e a grande curiosidade que suscitavam as noticias que corriam ácerca das Lendas da India. A necessidade de revisar a parte da narrativa do descobrimento da India no seu Poema, levaria-o a ir conversar com o venerando chronista. A hostilidade contra o Gama, e quem na estirpe seu se chama, proviria d'este encontro? adiante o confirmaremos, diante de um tenebroso acontecimento ligado a um odioso crime. A) Chegada a Gôa, e prisão sob D. Constantino de Bragança. (1561) Como prezo de estado, Camões transportar-se-hia de Malaca para Gôa na Náo da Viagem da China, ou da Prata e da Sêda, que partia de Macau por Janeiro ou Feve reiro de cada anno, chegando depois de tocar em Malaca a Gôa em Maio ou Junho. Condiz com a data de 1561, que lhe assignam os biographos para esta chegada, ainda nos ultimos mezes de governo do Vice-Rei D. Constantino de Bragança, cujo triennio findou em 7 de Septembro. Camões foi internado na cadêa do Tronco de Gôa; Manoel Corrêa o declara no seu commento, abonando-se com a confissão do poeta: «Os maiores amigos que tinha, o mexericaram com o Viso Rey da India, como elle me disse, contando os enfadamentos que na India tivera, por que foi causa de o prenderem e enfadarem.» O Vice-Rei era D. Constantino de Bragança, que tornando effectiva a prisão sob que o poeta viera capitulado, lhe prolon gou os enfadamentos desleixando o seu jul gamento. O poeta separou os dois factos de o prenderem e enfadarem. Dom Constantino de Bragança tratava da sua retirada do poder, e de terminar a náo que o havia de transportar para o reino, acirrado pelas parodias de Romances velhos com que o apodavam. Conta-o Diogo do Couto, na Decada VII, cap. 11: E tanto que lhe contrafizeram aquelle romance velho: <em Mira Nero de Tarpea a Roma como ardia... Mira Nero da janella la nave como se hazia.» 1 O Vice Rei Dom Constantino de Bragança não se preoccupou em tomar conhecimento dos capitulos formulados contra Camões, e deixou-o jazer no tronco. Para se fazer lembrado, dirigiu-lhe Camões as Outavas II, em que allude ao seu feito bellico da victoria de Jafanapatão do fim de Dezembro de 1560: Serão memoria vossa os fortes muros Póde tomar o vosso nome dino 1 O mesmo acontecera a Francisco Barreto na sua visita á Fortaleza de Chaul em principio de 1558: Os soldados descontentes cantavam-lhe de noite versos de escarneo, assás deshonestos.» (Storck, Vida, p. 602.) Fixada a data do regresso do Vice Rei a Gôa em Março de 1561, temos determinada a prisão de Camões por Junho, d'este anno, quando o Vice-Rei se sentia mais perturbado no seu governo; o poeta allude a esses conflictos da opinião, repellindo-os : E como com virtude necessaria, E não menos seria reputado Que contra meu tão baixo e triste estado E alludindo com certo resentimento ao Governador Francisco Barreto, a quem D. Constantino de Bragança succedera em 1558: E depois de tomar a rédea dura Não é muito, Senhor, se o moderado |