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Era n'este meio profundamente perturbado, em que se imprimia a austera, apagada e vil tristeza de uma época de irremediavel decadencia completa, que vinha Camões dar agora publicidade ao Canto heroico da idealisação da Patria. Assim apóz uma lucta de resistencia tenaz contra os soffrimentos physisicos, vinha elle iniciar a ultima quadra da sua vida sob o pungimento das torturas

moraes.

A) O fim da Peste grande de 1569 Furto do PARNASO DE CAMÕES (1570) Os LUSIA DAS na Censura. (1571)

O jubilo com que Camões regressara a Lisboa contrastava com a tristeza publica causada pela calamidade que ficou na historia com o titulo de Peste grande, e não menos pela quebra do valor da moeda, pela instabilidade social, em que a administração e a politica estavam sob o arbitrio da classe ecclesiastica. Na relação manuscripta da Bibliotheca nacional attribue-se a Peste grande a castigo divino pela quebra da moeda: «E as Egrejas tambem receberam seu grande pedaço de perda, por terem acabado de receber as esmolas das Endoenças da Semana Santa, que é uma grande cópia de esmolas n'esta cidade.» Lisboa já não era essa côrte florente, onde Camões passou os seus mais alegres e venturosos annos de uma mocidade deslum. brante; era uma necrópole quasi deserta, dominada pelo fanatismo, pelas cavilações de uma politica de traição fomentando o unitarismo iberico como auxilio á unidade catholica da Santa Liga, hallucinando as ambições do

joven monarcha. Camões, que regressara pobre da India, veiu achar Lisboa na indigencia motivada pelo abaixamento insensato do valor da moeda. Em um manuscripto interessantissimo de 1569, lêem-se estes dados: «A causa porque se tirou e abateu a moeda, foi por que vinha muita e em grande numero de Inglaterra secretamente, entre barris de farinha e entre pipas de prégos e em outras muitas partes d'onde a podiam trazer escondida, e era tanto d'isto, que dentro em Inglaterra se estava fazendo e batendo em ruas publicas, e d'esta maneira nos enchiam Portugal de cobre e levavam todo o ouro e prata, e tanto com isto deitavam a perder este reino, que havendo grande multidão de moedas de ouro de mil reis e de quinhentos reis de cruzes, e portuguezes, e de prata, despejaram o reino tão depressa d'esta boa moeda, que veiu a não haver uma senão por milagre.» Para corregir este erro economico, os conselheiros do joven rei D. Sebastião commetteram outro erro mais desastroso, promulgado pela lei e pragmatica de 14 de Abril de 1568, em que o patacão de dez reis era reduzido a trez; a moeda de cinco reis reduzida a real e meio; a de tres reis reduzida a um real, e a de um real reduzida a meio. Para subtrahirem Dom Sebastião aos queixumes do povo, levaram-o para Almeirim. O poeta comico Chiado, no Auto das Regateiras, confirma este abalo economico, referido no manuscripto contemporaneo citado:

1

1 Ms. da Bibl. nac. Publicado pelo Dr. Ribeiro Guimarães no Summario de varia historia, t. 11, p. 160.

VELHA Tudo vae fóra da estrada,
bem o vejo e bem o sei!

COм. E mais com esta ida de El-Rei,
não hade haver venda nada.

VELHA: Comadre, eu vos direi,

COM.

fico-m'eu n'aqueste inferno.

COм. Muitas vezes cuido eu
que se vay a Almeirim
hum rei meado inverno.
VELA: A fazer rico escourpim.
D'isso só me fica magoa,
nunca é contente a pessoa,
um Rei que estava em Lisboa
assi como peixe n'agoa;
mas vós veredes o que sôa.
VELHA: Todos nós isso ermamos,

comadre, manso o dizeis,
mas sam vontades de reis,
que quereis que lhe façâmos,
como dizem - Lá vão leis...
(Fl. 3)

Pelo Manuscripto contemporaneo se explicam estas allusões do Auto das Regateiras, em que se reflecte a vida popular: «De maneira que esta Pragmatica saiu a quarta feira de trévas, estando El Rei em Almeirim, pelo que era lastima vêr a gente de Lisboa pasmada, por que como havia pouca prata e não havia outra moeda senão cobre, e por terem todos esperanças de não cumprir a tal pragmatica, e cerrarem-se todos sem querer vender nada, e ser vespera de festa, julgue cada um aqui o povo de Lisboa, qual andaria e qual estaria, ao que acudiu a Camara e a Misericordia d'esta cidade, mandando a Almeirim dar conta a El rei do reboliço que ia em Lisboa, que quizesse permittir houvesse emenda no mandado. E a quinta e sexta feira estiveram assim todos esperando, sem

n'esse dia quererem vender cousa alguma. E ao sabbado, vespera da Paschoa, vieram e trouxeram por novas, que El rei mandava se cumprisse o que tinha mandado, sem remissão, havendo respeito ao isentar causas que para isso havia. Foi tal a revolta e clamor n'este povo de Lisboa, por causa da muita perda que recebiam, que houve desesperados que, com sentirem o perdimento de dinheiro perdiam as vidas enforcando-se, outros andavam pasmados.» (Op. cit. p. 158.)

Depois do rebate da moeda, veiu a Peste acabar de reduzir á miseria o povo de Lisboa ; reproduzimos aqui esse quadro de desolação, para representar o estado em que veiu Camões encontrar a patria que elle tanto pensara engrandecer: No mez de Junho de 1569 se acharam muitos pessoas n'esta cidade doentes de inchaços, e outras que morriam uma morte muito apressada, e todavia andava um ruge-ruge de povo que era peste, mas como havia trinta e nove annos que a Portugal não viera este mal, e o não conheciam, uns zombavam d'isso, outros de experiencia e edade affirmaram sel-o.- No mez de Junho veiu todavia a ser este rumor tão grande, que certificando alguns ser peste, mandou El rei fazer ajuntamento dos physicos, para o determinarem. Os modernos diziam não ser este mal, dando por razão que o inverno fôra muito grande, e a humidade causara taes postêmas em os corpos; e os antigos e de experiencia, que tinham visto outros, affirmavam sel-o e accolhiam-se e davam de conselho aos amigos que se fossem por ser refinada peste, e já a esse tempo morriam cada dia 50, 60 pessoas,

mas andava tudo calado e secreto para não se despejar a cidade, e se viam ir os mercadores diziam que elles inventavam isto por fugirem para o Golpho. Andava a gente assim d'esta maneira indeterminada até entrar o mez de Julho, onde se inventou que no interlunio do dito mez, que era a 10 d'elle, se havia de subverter a cidade, e que o Castello se havia de juntar com o Carmo e com Almada; e não se espante quem isto lêr, nem me tenha por parte em escrever tal zombaria, por que affirmo, e foi assim, que tão crente andava esta abusão e parvoice em toda a gente, assim popular como de muita qualidade, que chegou a tanto a crença d'ella, á vespera do dito entre-lunio se despejou toda a cidade com tão desatinado impeto, e tão sem ordem nem proposito, que cada um caminhava sem saber para onde, indo pôr arrabaldes e termo aos pés das oliveiras, com fato, mulheres e filhos; e passado o entre lunio, em que deu muito grande pancada de mal, acabando de entender o que era, se foram os que poderam e tinham posses para as partes que queriam, e os pobres se tornaram á cidade.

No mez de Julho e Agosto não houve dia em que não morressem 500, 600, 700, não havendo já adros aonde se enterrar, que 20, 30, 40, 50, 60 se deitavam em cada cova, que para isso se fizeram muitas, grandes, como se disse na prégação da Saude. (Refere-se ao sermão de Fr. João da Silva, na egreja de S. Domingos.) De maneira que morria a gente fallando uns com os outros e cahiam mortos, sendo já tanta a quantidade, que por não haver sagrado donde os podes

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